Saturday, December 29, 2007

O jogo dos conceitos


Escrevi há pouco que enxergo muito mais arte no quadro Las Meninas, de Velázquez, do que na obra completa de alguns artistas contemporâneos. Pode-se argumentar que os artistas de hoje lidam com outras questões, e que a comparação não tem cabimento. Mas eu não considero Velázquez superior apenas do ponto de vista da técnica, ou da beleza, mas também, por assim dizer, "no campo do adversário", isto é, nos conceitos que ele propõe discutir em suas obras.

Las Meninas (1657) é uma pintura tão rica, sofisticada e cheia de sutilezas que nem vou entrar aqui numa análise detalhada. Mas recomendo a leitura da introdução de As palavras e as coisas, de Michel Foucault, texto em que o filósofo francês (na minha opinião, o mais influente pensador do século 20) demonstra como Velázquez pinta a representação da representação, isto é, como o quadro desnuda os princípios que orientavam a atividade artística na fronteira entre dois modelos, o clássico e o moderno (moderno no sentido histórico, não artístico). O quadro que é objeto do quadro é ocultado do espectador, com quem o artista estabelece um jogo de espelhos. 350 anos depois de criada, é uma tela que continua dizendo coisas importantes. Não encontro em nenhum artista conceitual discussão mais profunda.

Outro tema que agrada aos pós-modernos é a explicitação do jogo de referências e influências com artistas do passado. Mas é claro que isso também não é novidade. Manet fez isso de forma muito mais inteligente e provocadora no quadro seminal Olympia, problematizando a relação da arte com suas fontes ao citar a Vênus de Urbino, de Ticiano. Isso em 1862.

Manet, que com razão é considerado por muitos críticos o marco zero do Modernismo - aliás, pouca gente lembra, mas Manet esteve no Brasil, em 1849, e há quem diga que a luz e as cores do Rio de Janeiro influenciaram o surgimento do Impressionismo; falarei disso em outro post - fez muito mais do que um pastiche: ao dialogar com uma referência clássica num quadro que retratava escandalosamente uma prostituta, ele desafiou os valores da tradição, não apenas no tema, mas também na forma, já que o quadro desrespeita deliberadamente a perspectiva clássica e outras convenções formais (no contraste acentuado das cores, nas pinceladas grossas das flores, na luz chapada - como se o próprio olhar do espectador iluminasse a modelo, diferentemente da Vênus de Ticiano, com sua sutil iluminação lateral).

Nessa revisão Manet apontava novos caminhos, enquanto o pós-modernismo faz o comentário irônico da ausência de caminhos novos. Nesse sentido o pós-moderno é literalmente reacionário, isto é, age no sentido contrário à proposta moderna de se estabelecer uma tradição do novo, transformando a arte num sistema endogâmico, encapsulado sobre si mesmo - embora, é claro, cada vez mais articulado com redes de consumo simbólico.

O pintor repetiu o procedimento com o próprio Velázquez:

E com Goya:

(Parêntesis: René Magritte, por sua vez, fez uma apropriação surrealista do Balcão de Manet, em 1950, profetizando talvez a morte da pintura que estava prestes a acontecer:

)
Manet deu início ao projeto moderno de autonomia da arte, isto é, libertar a pintura do discurso idealista-acadêmico que pressupunha a busca da perfeição mimética. Do ponto de vista temático, a vida cotidiana contingente substituía a Antigüidade transcendente. A representação passava a ser menos importante em si que como pretexto para a investigação da linguagem pictórica, cada vez mais transparente na materialidade de seus procedimentos, o que pode ser ilustrado pelas diferentes árvores que Mondrian pintou entre 1910 e 1912:



Manet, de certa forma, inventou o quadro como objeto material, promovendo assim uma ruptura consciente entre tradição e modernidade. Esse passo inaugural desencadeou uma investigação que, radicalizada, resultaria em Picasso, na abstração e nas vanguardas artísticas do início do século passado.

O gesto de Manet foi criador. Bem diferente foi o gesto de Robert Rauschenberg, ao reproduzir imagens de Vênus de Velázques e Rubens numa série de quadros em silk-screen, cem anos depois. Manet produziu, autoralmente; Rauschenberg reproduziu, mecanicamente, substituindo o sujeito criador pelo confisco, pela citação estéril, pela repetição de imagens pré-existentes. Não por acaso, Rauschenber foi o primeiro artista a quem um crítico (Leo Steinberg, em Other Criteria) como pós-moderno. Pode-se dizer que Rauschenberg foi o Manet do pós-modernismo? Talvez, mas isso é bom?

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