Monday, December 31, 2007

Vodka e arte


Em fevereiro de 2006, a conceituada revista americana ARTnews trouxe como matéria de capa o "Top Ten" das tendências que estavam ditando a produção artística contemporânea, entre elas a espiritualidade, o mockumentary (ou documentário fake), o maneirismo pós-moderno e o neo-psicodélico. Passados quase dois anos, a lista já deve estar bem diferente: por definição, listas de Top Ten precisam mudar, para fazer sentido. Como dizia um personagem do romance O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa: "Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude".

É esta a essência da arte contemporânea reduzida à lógica do mercado e da mídia: aparentar mudar, para que o sistema continue girando, mas no fundo sem mudar nada, já que a História da Arte acabou e só nos resta a manipulação cínica de linguagens do passado, sem qualquer conteúdo crítico, sem qualquer projeto transformador ou emancipatório.

A aliança do sistema da arte com as grandes corporações é um casamento por interesse, é claro, sem amor verdadeiro. Tanto é assim que os artistas, que gostam de atitudes rebeldes, o escamoteiam, ou o justificam com certo constrangimento: ora, Michelangelo e Leonardo Da Vinci também precisavam de mecenas. O próprio museu foi criado para que o grande público aceitasse a arte promovida pelo mecenato privado. São argumentos simplórios, é claro, mas servem para confortar os menos exigentes. Eu, particularmente, ainda me sinto incomodado quando vejo a assinatura Picasso num carro (cujo design, aliás, nada tem a ver com Picasso).

Fico mais incomodado ainda quando leio que a Absolut Vodka - que teve no mercado brasileiro a maior taxa de crescimento em termos mundiais (mais de 100% este ano) - encomendou a diversos artistas, começando por Nelson Leirner e Daniel Senise, garrafas da bebida em tiragens limitada (48 mil de cada artista, rapidamente esgotadas. Leio no site da Absolut que a garrafa de Leirner usa "uma linguagem onírica", imagens de singelas borboletas combinadas a uma profusão de cores, usando a técnica de stickers que o artista vem abraçando nos seus trabalhos mais recentes. Já a de Senise é inspirada pelas rochas de Copacabana, e tem "um tom mais irreverente e provocativo, com a imagem de um macaco no meio de estilhaços de madeira".


Segundo o site, "a parceria entre ABSOLUT, Nelson Leirner e Daniel Senise enfatiza a devoção mútua pela criatividade, elegância e arrojo. (...) Além de abraçar o conceito arte, o projecto traz também uma outra grande característica da marca, o collectible, o objecto do desejo colecionável pela legião de fãs de Absolut". A campanha da Absolut continuará com "novíssimos nomes da arte contemporânea brasileira, como "Nando Costa, Adhemas, Abiuro, Glauco Diogenes, Gui Borchert, Marconi, Nitrocorpz, Colletivo, Rubens Lp e mooz".


A estratégia de comunicação da Absolut começou em 1985, com o projeto Absolut Warhol (naturalmente: Andy Warhol foi o profeta da arte como business); no ano seguinte foi a vez de Keith Haring, e hoje já são mais de 400 os artistas(mas também designers, estilistas como Versace e Gaultier etc: para o mercado, é tudo a mesma coisa) que alugaram seus nomes para campanhas da empresa - incluindo, é claro, o rebelde Damien Hirst. Coroando a iniciativa, em 2003 a Absolut se tornou a primeira marca a ser convidada como expositora oficial da Bienal de Veneza. Dois anos antes, o Guggenheim de Nova York tinha aberigado uma mega-exposição sobre... Giorgio Armani, que coincidentemente doara 15 milhões de dólares ao museu.

Pode-se fazer de conta que no Renascimento ou no projeto moderno também era assim, é claro. O tempo vai dizer o que restará dessa produção artística que se rendeu ao canto da sereia do capital. A boa arte, como a boa vodka, a gente conhece no dia seguinte.

3 comments:

Elias Maroso said...

Gostei muito desta postagem!

Quero continuar frequentando seu blog. Abraços.

Agnaldo said...

Caro Luciano,
parece que você confunde arte com mercado de arte, com vanguarda, com história da arte, etc.
1) A essência da arte, seja ela contemporânea ou do séc.XV, é objeto de estudo da filosofia desde Kant até Danto e, portanto, não tem cabimento dizer que sua "essência" foi reduzida à lógica do mercado.
2) O mercado de arte é apenas um pedaço do sistema de arte, composto por artistas, público, museus, galerias, universidades, etc.
3) Parece que você se esquece das universidades, que a arte é um dos campos do saber assim como a ciência e a filosofia; que existem linhas de pesquisa de mestrado e doutorado, em arte, filosofia e história da arte (arte contemporânea inclusive, apesar de você não gostar).
4) Nem a arte, nema a história da arte acabaram. Apesar de títulos de livros como "O Fim da História da Arte", de Hans Belting, e "Após o fim da arte", de Arthur Danto, sugerirem isso. Leia esses livros e você verá que a discussão diz respeito a um tipo de historicismo, um tipo de narrativa modernista, que "empacotou" a história da arte como sequencia de estilos.
5) Parece que você anseia por uma arte engajada, politizada. Tudo bem, todos temos nossas preferências. No entanto, não podemos esquecer que essa postura política, presente na estética de Hélio Oiticica, Glauber Rocha e de Alexandre Vogler, apesar de você não gostar, responde apenas por uma parte da arte. Existe uma infinidade de artistas fazendo de tudo, desde pintura figurativa até mutilações ao vivo. E tudo isso é arte, queira você ou não (leia um pouco de Thierry de Duve para compreender o deslocamento do juízo de gosto de "Isso é belo" para "Isso é arte").
6) Parece que seu pensamento é vanguardista, esse seu desejo por uma arte transformadora e emancipatória. Essa era a utopia modernista de artistas do início do século XX. Uma linha de raciocínio que já tem 100 anos. As vanguardas sim acabaram: e com elas a ilusão de mudar o mundo através da arte.
7) Por fim, se você acha que arte "é manipulação cínica de linguagens do passado", então está chamando todos os estudiosos e amantes da arte de cínicos ou de idiotas.

Abraços,
Agnaldo

Agnaldo said...

Caro Luciano,
parece que você confunde arte com mercado de arte, com vanguarda, com história da arte, etc.
1) A essência da arte, seja ela contemporânea ou do séc.XV, é objeto de estudo da filosofia desde Kant até Danto e, portanto, não tem cabimento dizer que sua "essência" foi reduzida à lógica do mercado.
2) O mercado de arte é apenas um pedaço do sistema de arte, composto por artistas, público, museus, galerias, universidades, etc.
3) Parece que você se esquece das universidades, que a arte é um dos campos do saber assim como a ciência e a filosofia; que existem linhas de pesquisa de mestrado e doutorado, em arte, filosofia e história da arte (arte contemporânea inclusive, apesar de você não gostar).
4) Nem a arte, nema a história da arte acabaram. Apesar de títulos de livros como "O Fim da História da Arte", de Hans Belting, e "Após o fim da arte", de Arthur Danto, sugerirem isso. Leia esses livros e você verá que a discussão diz respeito a um tipo de historicismo, um tipo de narrativa modernista, que "empacotou" a história da arte como sequencia de estilos.
5) Parece que você anseia por uma arte engajada, politizada. Tudo bem, todos temos nossas preferências. No entanto, não podemos esquecer que essa postura política, presente na estética de Hélio Oiticica, Glauber Rocha e de Alexandre Vogler, apesar de você não gostar, responde apenas por uma parte da arte. Existe uma infinidade de artistas fazendo de tudo, desde pintura figurativa até mutilações ao vivo. E tudo isso é arte, queira você ou não (leia um pouco de Thierry de Duve para compreender o deslocamento do juízo de gosto de "Isso é belo" para "Isso é arte").
6) Parece que seu pensamento é vanguardista, esse seu desejo por uma arte transformadora e emancipatória. Essa era a utopia modernista de artistas do início do século XX. Uma linha de raciocínio que já tem 100 anos. As vanguardas sim acabaram: e com elas a ilusão de mudar o mundo através da arte.
7) Por fim, se você acha que arte "é manipulação cínica de linguagens do passado", então está chamando todos os estudiosos e amantes da arte de cínicos ou de idiotas.
Abraços,
Agnaldo