Saturday, March 29, 2008

O que virá depois do pós-moderno?


O pós-modernismo não é um fenômeno limitado às artes visuais, seu impacto atinge todas as esferas da vida. Mas é interessante observar como a produção artística contemporânea ilustra as grandes características pós-modernas - sempre tomando como referência o Modernismo:

1) descrença nas grandes narrativas - no caso, a grande narrativa da arte moderna, substituída pela fragmentação pluralista e a-histórica;
2) crise de autoridade cultural: a verdade e o conhecimento são relativos e dependem de um sistema de relações de poder e de jogos de linguagem - coerentemente, os valores absolutos da arte moderna se esgotaram e foram abandonados;
3) mudança da produção para a reprodução - a arte é dominada pelo império das citações, apropriações e recombinações de recursos e linguagens do passado, em novos contextos.
4) a substituição da realidade, convenção antiquada, por uma ficção, isto é, por uma mitologia fabricada pela mídia, pela publicidade, pela indústria do espetáculo etc - cujos mecanismos são cada vez mais usados pelo sistema da arte.
5) a falência das utopias baseadas na crença no potencial emancipador do progresso, da ciência e da política - que encontra seu correspondente nas teses sobre o fim da (história da) arte de Arthur C.Danto e Hans Bellmer, que, em termos práticos, afirmam que a arte já bateu no teto, já cruzou sua linha de chegada.

Por tudo isso, a atitude do artista contemporâneo em relação á História da Arte, sobretudo em relação á arte moderna, é fundamentalmente irônica (quando não é de desprezo e ignorância). O quadro acima, de Mark Tansey (já citado em outro post), ilustra isso muito bem, começando pelo título>: "Uma breve história da pintura moderna" (1982).

A obra, supostamente, "desconstrói" a interpretação da arte moderna como uma evolução linear em relação à pureza de cada suporte, dispensando paulatinamente elementos estranhos a ele - por exemplo, as funções de narrativa e representação. Assim, do Renascimento ao Impressionismo, a pintura era uma "janela na parede", que levava o olhar do espectador a outro mundo; com as colagens cubistas, no começo do século passado, a tela ganha opacidade: a pintura, na superfície, não remete a um fato exterior, mas cria um fato pictórico; por fim a pintura se transforma num reflexo do ego do artista.

Engenhoso e engraçadinho, sem dúvida. Mas, curiosamente, para executar essa brincadeira, Tansey recorre à pintura, e à pintura numa linguagem figurativa primária. Ora, se o artista se coloca fora e acima desta superada história da pintura, isso me parece uma contradição. Além do mais, obras-primas foram feitas tanto no modelo da janela para o mundo quanto no modelo da opacidade da tela, enquanto o painel de Tansey, bem, me parece distante de uma obra-prima. É,a rigor, mais um comentário do que uma obra de arte.

Isto porque a arte nunca esteve nas convenções que prevaleceram em cada época: essas convenções eram apenas uma estrutura, dentro da qual se podiam fazer obras geniais ou medíocres. Denunciar a existência dessas convenções não diminui em nada o valor estético de um pintura de Rembrandt ou de uma colagem de Picasso - nem, muito menos, transforma em artista o denunciante.

A fogueira das vaidades

Já em meados do século passado, críticos como Dwight MacDonald e Clement Greenberg apontavam para a indigência intelectual da cultura de massa e os perigos da subordinar as manifestações culturais à lógica do consumo. No ensaio Masscult and midcult, MacDonald cunhou esses dois termos para descrever e, ao mesmo tempo, criticar o poder crescente da indústria cultural, que investe na produção de uma cultura facilmente digerível por uma sociedade de massa. Por sua vez, Greenberg recorreu à palavra alemã kitsch para tratar desse fenômeno no campo das artes plásticas, isso é, da arte de fácil assimilação, em oposição à arte de vanguarda, verdadeiramente inovadora e radical. Embora ninguém mais fale disso, este debate sobre a diferença entre vanguarda e kitsch é elucidativo em relação à situação da arte contemporânea.

Uma premissa comum a MacDonald e Greenberg é a de que existe uma hierarquia na cultura e na arte (isto é, existem obras-primas e obras de segunda e terceira qualidade), à qual corresponde uma hierarquia do gosto, do sublime ao vulgar. Em frentes diferentes, e por motivos variados (alguns válidos), essa idéia de uma escala de valores foi de tal maneira bombardeada que hoje qualquer defesa da outrora chamada alta cultura é imediatamente entendia como elitista, colonizada, classista, reacionária etc. Está disseminada a tese de que não existem manifestações artísticas superiores e inferiores, apenas "diferentes". Beethoven e Ivete Sangallo se equivalem, cada um na sua.

A produção artística contemporânea se inscreve nesse contexto, afinal de contas inescapável - já que o relativismo nivelador e pluralista é um traço distintivo da nossa época, do novo paradigma em que vivemos. Ironicamente, porém, existe uma esfera na qual a idéia de uma escala de valores continua forte: o mercado de arte contemporânea, que cresceu e se multiplicou segundo o Evangelho do capital globalizado, na mesma medida em que as outras dimensões da arte se esvaziaram e perderam importância.

Sinais dessa redução de todos os valores à escala econômico-especulativa do mercado (não se trata de opiniões, mas de constatações, aliás confirmadas e reconhecidas por gente do próprio sistema da arte):

. a obra de arte se desestetizou e se desvinculou da História
. do artista não se espera mais técnica nem talento;
. do crítico não se espera mais julgamento, apenas testemunho;


A arte se aproximou da lógica da moda, do consumo, do espetáculo, do marketing etc: para uma carreira de êxito hoje, a qualidade da obra é o menos importante. Neste horizonte, os artistas, principalmente aqueles de sucesso, entram como inocentes úteis: quanto menos entenderem o que acontece (aliás, quanto menos entenderem da própria arte), melhor (no caso de artistas de países periféricos como o Brasil, isso pega até bem no exterior: ainda somos, afinal de contas, uma reserva de exotismo primitivo e ignorante, mesmo quando tentamos imitar a arte dos grandes centros, adotando a linguagem internacional da "world art").

No Brasil, isso chega ao caricato: o debate é sempre sobre questões menores, numa fogueira de vaidades em que a lealdade à própria panelinha e o medo de aborrecer os poderosos da vez silencia, de antemão, qualquer tentativa de pensamento crítico ou independente.

Na outra ponta, dos compradores de arte contemporânea também já não se espera que entendam de arte, apenas que comprem. Como eles, em muitos casos, estão interessados em comprar prestígio e distinção social, e não a obra de arte em si, é até bom que nao entendam nada, porque assim dão trabalho a curadores e conselheiros particulares que orientam suas aquisições. Mas como, no Brasil, imperam a troca de favores e lei de se levar vantagem em tudo, não é incomum acontecer o seguinte:

. o conselheiro do colecionador (que pode ser privado, pessoa física, ou representantre de uma pessoa jurídica, como o diretor de marketing de uma grande corporação, ou o dirigente de alguma instituição com poder sobre a política de aquisições) promove aquele(a) artista no qual tem, por vias freqüentemente tortas, algum tipo de interesse (cultural, comercial, social, ou mesmo sexual, drogal etc)
. por sua vez, o colecionador quer pagar pouco e pede descontos altíssimos (quando não pede a obra em doação, já que o prestígio de integrar sua coleção também é uma moeda)
. já que o valor oferecido é baixo, o artista entrega uma obra de segunda ou terceira categoria.

O resultado disso tudo é que se vai formando uma grande coleção de obras menores, e as pessoas que sabem disso fingem que não sabem. Feitas as contas, pouco dinheiro circulou, mas a rede foi posta em atividade, e é isso que importa: amanhã ou depois as pessoas envolvidas indicam umas às outras para a composição de um júri ou comissão, ou quem sabe para uma viagem a uma feira internacional, se possível com apoio do Governo.

Este foi apenas um exemplo genérico e hipotético: qualquer semelhança com pessoas ou situações concretas terá sido mera coincidência. O que importa é sublinhar que, com o tempo, práticas muito parecidas vão se repetindo, as pessoas vão se comprometendo umas com as outras, e, quando a gente se dá conta, o mundo da arte se reduziu a isso: um jogo de lobbies interesses pequenos (mesmo quando os valores são altos), no qual a arte é o que menos importa - e, portanto, qualquer debate relevante sobre arte deve ser evitado.

Neste horizonte, é compreensível a disseminação do pluralismo de mercado, que ignora as diferenças entre a vanguarda e o kitsch: esta é uma distinção que se torna irrelevante, pois o que importa é, exclusivamente, o caráter de mercadoria (mercadoria simbólica, inclusive) da obra (de qualquer obra, mesmo aquelas que dispensam talento, técnica, conhecimento e até a mão do artista). Num mundo onde todas as manifestações artísticas potencialmente se equivalem, a esperança que alimenta o jovem artista é ser assimilado e transformado em produto, aparecer na mídia, viajar e freqüentar o jet-set. Mas o que isso tem a ver com arte?

Muitas pessoas se contentam em fechar os olhos alegando, de forma ingênua ou cínica: "Ora, os artistas do Renascimento também tinham mecenas, os artistas modernos também vendiam suas obras etc". É evidente. Só que a arte tinha seu próprio sistema de valores, autônomo em relação ao capital (sistema que, aliás, servia de lastro para determinar o valor de mercado da obra, quando ela saía da esfera propriamente artística e passava ao circuito econômico e social das galerias, leilões, dos primeiros marchands etc).

Historicamente, dentro do sistema da arte, forças divergentes (artistas, mercado, instituições e seus diversos mediadores) viviam em atrito, e desse atrito nascia a transformação, sucediam-se os movimentos, nasciam novas questões. Enquanto, hoje, vivemos uma situação inédita de conformismo com o "fim da arte" e de harmonia entre propostas excludentes. Nesta situação, a co-existência silenciosa reflete não a realização de uma utopia democrática, mas o triunfo absoluto do capital globalizado, que reduz à arte a algo com o status simbólico da moda ou da indústria do espetáculo - e o artista em personagem exótico, mas no fundo secundário, do sistema.

Friday, March 28, 2008

O retorno do reprimido

Sempre convém dizer que há diversas exceções, artistas fazendo coisas interessantes etc. Mas, diante das tolices que são (literalmente) vendidas como arte contemporânea, no Brasil e no mundo, me pergunto se essa gente, bem lá no fundo, não sente:

- remorso por estar enganando pessoas de boa fé
e/ou
- medo de ser desmascarada, e de que a festa termine.

Não é preciso ler muito Freud para entender que são dois sentimentos que tendem a ser recalcados - e a se manifestar na forma de hostilidade contra qualquer um que se atreva a despertá-los.

Aproveitando, seguem mensagens que recebi no orkut, de estudantes de Arte:

DARK LULLABY:
Concordo plenamente c/ o q vc escreveu aki (recado anterior)... infelizmente, no campo das artes, se vc ñ tem um padrinho, as costas quentes ou coisa do tipo, vc ñ desenvolve pesquisa, ñ realiza trabalhos, ñ expõe, ñ cresce como artista! Sei disso pq passei por isso na facul (UERJ)... pra concluir minha facul de artes tive q fazer vários trabalhos p/ agradar professor, e ñ p/ me agradar ou desenvolver minhas habilidades.

Auto-retrato de Pollock

Trecho de um documentário (Pollock 51) dirigido por Hans Namuth em 1951. Foi Namuth que tirou as famosas fotografias de Jackson Pollock trabalhando em seu estúdio, hoje tão ou mais famosas que seus próprios quadros. Desnecessário dizer, considero Pollock um gênio.


Wednesday, March 26, 2008

El Lissitsky & Maiakovsky

"A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo"
(Vladimir Maiakovsky)




Acima e abaixo, poemas de Vladimir Maiakovsky, em composições tipográficas de El Lisstsky (Эль Лисицкий, 1890-1941), arquiteto de formação e artista típico do Construtivismo russo. Os trabalhos de Lissitsky investigam a relação espaço-tempo nas artes visuais: nos chamados Proun (sigla de "novos modos de visão"), ele propôs um tipo de visualidade que anula as três dimensões habituais em espaços abstratos, nos quais os referenciais espaciais se confundem.

Em 1922, El Lissitsky, percorreu diversos países da Europa como enviado especial, uma espécie de embaixador cultural do regime comunista. Foi para essa viagem que ele concebeu uma coletânea de poesias de Maiakovsky, para divulgar a mensagem revolucionária por meio da obra do maior poeta russo. O livro seguiu a estrutura de uma agenda telefônica, com ícones na margem direita para uma fácil localização de cada poesia.






Lisstisky também criou inúmeros pôsteres e fotomontagens, sempre com grande inventividade:



Sunday, March 23, 2008

On Kawara



Uma das obras do artista conceitual japonês On Kawara consistiu em cartões postais que ele enviava a pessoas do meio artístico, com a mensagem: “Ainda estou vivo – On Kawara” (parece que continua enviando: a obra só vai acabar no dia em que ele morrer). Numa performance de sua autoria, um casal dentro de um cubo de vidro recitava pausadamente, diante de dois microfones, números que indicavam a passagem do tempo.

Por fim, nas "date paintings", o artista pintou com tinta acrílica mais de duas mil telas com as datas correspondentes às pinturas (ilustrações acima). Achei essas informações adicionais sobre a obra: "O fundo recebe 3 a 4 camadas de tinta acrílica, com um intervalo entre uma aplicação e outra para a secagem. As letras são desenhadas e depois preenchidas com tinta branca, 4 a 5 camadas. Cada pintura recebe como título a data em que foi feita. Quando a tela não fica pronta no mesmo dia, ela é destruída". Profundo, não?

Yves Klein, Piero Manzoni

A arte contemporânea inverteu o postulado marxista de que a História acontece primeiro como tragédia, depois como farsa. Pois diversos procedimentos originalmente farsescos, cujo valor estava no seu caráter de provocação, a começar pelo próprio urinol de Marcel Duchamp, foram levados a sério e repetidos como cânone, o que não deixa de ser uma tragédia. Dois exemplos eloqüentes foram os gestos de Piero Manzoni e Yves Klein.

Em 1961, Piero Manzoni apresentou pela primeira vez ao público sua obra Merda d’artista ("Contenuto netto gr.30, conservata al naturale, prodotta ed inscatolata nel maggio 1961"), sua próprias fezes acondicionadas em 90 latas numeradas e vendidas a peso, pelo preço equivalente em ouro. Manzoni estava colocando em questão os limites a que a arte podia chegar, na egotrip conceitual auto-referencial do artista.

No ano seguinte, 1962, Yves Klein foi além, criando (e vendendo) o que ele chamava de "Zonas de sensibilidade pictórica imaterial" - ou, simplesmente, um "Immateriel". Tratava-se da seguinte experiência: Klein trocava um certificado dessas zonas por folhas de outro, e tanto o certificado quanto o ouro eram atirados num rio. O comprador vivia uma experiência singular mas fugidia, que colocava em questão os paéis do colecionador, do artista e, por extensão, do mercado de arte (na foto acima, Klein aparece em plena operação, com o escritor Dino Buzatti).

Por uma triste coincidência, os dois artistas morreram muito jovens, ainda no começo dos anos 60 - Manzoni com 30 anos, Klein com 34. Mas o que eles fizeram deveria cobrir de vergonha uma parte considerável de artistas conceituais e neoconceituais em atividade hoje, que, consciente ou inconscientemente, copiam e repetem propostas que já foram esgotadas quase 50 anos atrás.

No Brasil, isso tem relação direta com a precariedade da formação dos artistas, que com raras exceções se mostram totalmente desinformados em relação à História da Arte, mesmo à história de 20 ou 30 anos atrás. Sobretudo no Rio de Janeiro, muitos estudantes saem das escolas de arte sem sequer ouvir falar de Yves Klein e Piero Manzoni, e mesmo artistas brasileiros que expõem no exterior freqüentemente demonstram uma falta de cultura notável.

A baixa qualidade do ensino deve ter a ver com a falta de recursos. Sempre que escuto falar sobre a situação das escolas de arte, as notícias são desanimadoras. Pará só citar dois exemplos, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage emenda uma crise na outra (e uma diretoria na outra), enquanto a Escola de Belas Artes da UFRJ vive um conflito entre o anacronismo e o vale-tudo. Numa e noutra, o aluno que tiver vocação para a pintura está perdido: ele será condicionado a crer que a pintura morreu, que não existem mais pintores, que o negócio é fazer instalação etc. Tudo muito triste.

Saturday, March 22, 2008

Maldição eterna a quem não gostar do Tunga!


Muitas vezes um processo de transformação cultural ou artística demora anos, ou mesmo décadas, até ser assimilado pelas pessoas em geral e transformado em senso comum. Por exemplo, é interessante observar como, ao longo dos anos 80, o discurso teórico que se produzia sobre a arte ainda era "moderno", enquanto as próprias manifestações artísticas já tinham se desligado do espírito modernista. O sentido e a natureza da expressão "arte contemporânea", tal como ela é usada hoje, foram se sedimentando aos poucos, de forma tal que hoje é consensual, no mundo da arte, o reconhecimento de que houve uma mudança de paradigma, isto é, que a arte produzida nos últimos 30 obedece a um conjunto de valores diferente daquele que caracterizava a arte moderna, incluindo seus últimos movimentos de vanguarda, nos anos 60 e 70.

Mesmo assim, muitas pessoas razoavelmente cultas ainda não fazem distinção entre arte moderna e contemporânea, nem muito menos suspeitam que as relações entre o artista, o mercado e as instituições mudaram radicalmente. Isso acontece, em parte, porque estas pessoas deixaram de ter importância para o sistema, ou melhor: da mesma forma que a função da crítica foi anulada pelos gestores do mundo da arte - o crítico só serve hoje para testemunhar, não para julgar; seu trabalho passou a ser escrever prefácios de catálogos, ou mesmo fazer curadoria de exposições - o papel do espectador comum também foi reduzido ou mesmo eliminado, a não ser como consumidor passivo. Isso faz todo sentido, porque, na verdade, o crítico nada mais era que um espectador esclarecido, informado, qualificado para julgar esteticamente a obra, o que naturalmente tinha impacto na carreira e na cotação do artista. O movimento que tira de cena o crítico independente é o mesmo que dispensa o espectador com opinião.

É curioso: mesmo sem ter, rigorosamente, criticado de forma negativa nenhum artista, pois minha preocupação não é esta (quem tiver dúvidas deve reler todos os posts deste blog, desde novembro de 2007), despertei reações hostis não somente de alguns artistas como também dos seus satélites, gente que sem sequer ter lido o que escrevi passou a me olhar torto, a deixar de me convidar para festas etc. Passei a me perguntar por quê: a conclusão a que cheguei é que o novo paradigma da arte (que, de alguma maneira, determina o comportamento dessas pessoas) não é avesso apenas à dissidência, mas ao próprio pensamento - já que pensar implica, naturalmente, a faculdade de julgar, e o julgamento é coisa do passado.

Nas artes plásticas, vivemos a era da unanimidade. Se um artista ganha espaço na mídia, viaja ao exterior, participa de bienais, independente do que faça, isto significa que ele virou assim uma espécie de Deus reencarnado, de infalibilidade papal. Maldição eterna a quem não gostar do Tunga! (Nada contra o Tunga, só o cito como ilustração do fenômeno que estou analisando). Se um cidadão comum achar a obra do Tunga uma bobagem, este cidadão é uma besta, não entendeu nada; se se trata de um jornalista ou alguém razoavelmente informado, ele pode não ser uma besta, mas é, evidentemente, um reacionário.

Na ilustração, a obra mais conhecida de Tunga, as gêmeas "xifópagas pelo cabelo".

Friday, March 21, 2008

O mercado de arte contemporânea (3/8): o gabinete de curiosidades


“Por trás de todo movimento convulsivo da arte contemporânea, há uma letargia, algo que já não consegue se superar e que gira em torno de si numa recorrência cada vez mais rápida” (Jean Baudrillard)

Para que o pluralismo que caracteriza a produção artística dos últimos 20 anos possa existir e funcionar, ele precisa vir acompanhado de um relaxamento, por parte dos agentes reguladores do sistema, em relação aos critérios que, em todas as épocas, estabelecem o que é ou não arte, e o que é ou não boa arte. Cada época teve sua ideologia, seu conjunto de convenções e valores dominante; cada época teve também seus dissidentes, que rejeitavam essas convenções e valores e propunham algo novo; cada época teve, por fim, seus debates entre uns e outros, a partir dos quais a História da arte andava. Assim os impressionistas, rompendo com as convenções acadêmicas, levaram a Cézanne, que levou ao Cubismo etc. Não foram transições suaves, mas marcadas por atritos e disputas entre representantes de diferentes teorias, gostos, preferências e interesses.

Ora, do final dos anos 70 para cá, o mundo da arte vive uma situação inédita: critérios, valores e convenções deixaram de ter importância, porque todos estão repertoriados e todos são igualmente apropriáveis no jogo pós-moderno das citações. Se mudamos de época, os traços distintivos de nosso tempo são a irrelevância da obra e a ascensão dos curadores e seus lobbies. Por isso é que o curador tem um papel cada vez mais autoral no sistema da arte. Por isso, também, é que se escreve cada vez menos sobre as obras de arte em si, e cada vez mais sobre as redes em que ela circula, os prêmios que ganha, as cotações que atinge etc. Quem freqüenta os vernissages sabe que as conversas ali giram sobre tudo - viagens, praia, restaurantes, festas - menos sobre as obras expostas, às quais o visitante lança um rápido olhar, por cortesia ou meramente para cumprir um ritual, antes de passar a assuntos mais interessantes. Quando se fala sobre a obra, é sempre com adjetivos que pouco dizem, como "achei maravilhoso!"

(Começo a suspeitar que este é um traço do caráter brasileiro. Décadas atrás, o crítico Mario Faustino escreveu, a propósito de nossa vida literária: “Vida literária, emulação, reuniões sérias, leituras de poesia inédita, troca de experiências, debates, nada disso temos. Quando se conversa sobre um poema, o mais que sai, em geral, é o ‘tá bom’, o ‘muito ruim’, o ‘é uma beleza’. Em lugar disso tudo, há o fenômeno amizade, o mesmo que se verifica em nossa administração, em nossa política: meu amigo escreve bem, meu inimigo escreve mal”. Trocando duas ou três palavras, poderia estar falando do mundo da arte hoje, no qual a única divisão que importa é entre "os amigos" e "os inimigos", entre "a gente" e "eles".)

A rigor, nem poderia ser diferente: as galerias de arte contemporânea viraram gabinetes de curiosidades, freqüentados apenas por quem tem ou quer ter laços de amizade ou interesse com agentes do sistema da arte. Por isso não faz diferença a diversidade de tendências, materiais, propostas, atitudes do artista etc. Tudo isso é pretexto, só os ingênuos acreditam que a obra ainda é relevante. Transformadas em eventos turísticos e festivais espetaculares, as bienais são o melhor exemplo disso: ganham espaço na mídia as obras que chamam mais a atenção, as mais estranhas e escalafobéticas, o que é natural: na ausência de um equipamento crítico que aponte e justifique por que determinadas obras são boas e outras ruins, novas ou equivocadas, a percepção da arte se reduziu a isso, à tentativa de captar, nem que por alguns segundos, a atenção do olhar.

Por sua vez, o colecionador não compra mais uma obra de arte, mas o reconhecimento social que sua posse proporciona. O conceito de expertise morreu: um crítico ou historiador podia escrever páginas e páginas sobre uma tela de Cézanne, abordando das cores à composição, das pinceladas à luz e à perspectiva. Mas que tipo de conhecimento é necessário ter para analisar ua placa de alumínio pintada com esmalte indutrial em letras de forma, por um funcionário do artista? Ou um cãozinho de brinquedo? Ou um tubarão partido ao meio?

Se, até o fim da arte moderna, a relação entre os diversos agentes do sistema era feita de tensões e atritos permananentes - tensões e atritos que acabavam servindo como filtros aos quais só sobrevivia a verdadeira arte - hoje os agentes agem em uníssono, com um objetivo comum: o lucro e a reprodução das redes que fazem o sistema girar. Neste cenário, ficou até ridículo falar em arte verdadeira, pois evidentemente toda arte aprovada pelo sistema (leia-se, pelo mercado) é verdadeira. Ao crítico, vale sempre lembrar, não cabe mais o papel de julgar, mas de testemunhar (e chancelar teoricamante) a obra que é designada como arte. Coroando a ação entre amigos, o Estado também dá sua forcinha, pagando viagens a feiras comerciais e delegando aos departamentos de marketing das grandes corporações privadas, via leis de renúncia fiscal, a função de decidir em que tipo de arte merece ser investido o dinheiro público.

Reforça a tese de que os diferentes agentes têm objetivos comuns o fato de que muitas vezes se acumulam papéis: o colecionador particular é também membro do conselho de algum museu ou instituição, ou curador de uma determinada exposição: é um ser com um pé na instituição, um pé no mercado e um pé na crítica (haja pés!). Em suas diversas áreas de atuação, suas atitudes são complementares e se reforçam mutuamente, elevando as cotações dos artistas eleitos: ele aposta na obra que ele próprio legitima, sem depender de instâncias independentes de valorização. Do ponto de vista do artista, o mero fato de integrar determinado acervo ou coleção já é considerado, muitas vezes, um pagamento pela obra. Assim o colecionador não gasta nada, e o artista não recebe nada, mas ambos ganham prestígio e distinção, que aumentarão as chances de novos negócios. Uma mão lava a outra.

Já que as escolas de arte não ensinam mais técnicas de pintura, escultura etc, deveriam ao menos ensinar algo realmente útil: que uma carreira de sucesso se constrói com o acúmulo de capital social, isto é, vence o artista que for capaz de estabelecer contatos e criar laços com os agentes estratégicos do sistema da arte - marchands, curadores, galeristas, críticos etc. Não importa a qualidade do seu trabalho, idéia superada do passado: vale a rede de relacionamentos, capaz de transformar qualquer coisa em arte.

Dos eleitos da vez, não se pode falar, a não ser para rasgar elogios. No passado, era aceitável que mesmo os maiores artistas errassem de vez em quando, fizessem obras menores ou equivocadas. Os eleitos de hoje nunca erram: são de tal forma constantes em sua perfeição que fazer qualquer restrição às suas obras é um comportamento de alto risco para quem faz parte do clube. Para citar um artista que admiro muito: nos anos 80, por exemplo, só se falava de Daniel Senise. Mas já então não se discutia sua arte, nem as questões que ela propunha - como costumava acontecer com os artistas em evidência nos anos 50 ou 60.

No novo paradigma da arte em que vivemos (mas dos quais nem todos se dão conta, ainda presos a uma ideologia moderna), os fatores se inverteram. O êxito, o estar em evidência, não são mais conseqüências secundárias da obra desenvolvida pelo artista; são as condições primárias que estabelecem a existência dessa obra. Não se trata mais de reconhecer, mas de designar. E, uma vez designado e eleito, o artista não precisa mais se preocupar: refratário ás críticas, ele pode dedicar seu tempo às festas, viagens e aos aspectos mundanos do sucesso, ao menos enquanto o sistema não deicidir que é hora de designar novos eleitos.

Essa lógica funciona desde o topo da pirâmide social da arte até o cotidiano dos artistas que vivem de forma mais precária, ou dos estudantes de arte a quem se ensina que não existem mais pintores, só artistas. Por exemplo, a obra lá do alto, um "diamante" de Jeff Koons, foi avaliada recentemente pela Christie's em 20 milhões de dólares. Aqui embaixo, na base da pirâmide, um estudante de arte do Parque Lage ou da UFRJ sente, no seu íntimo, que é capaz de fazer coisa até melhor, sem muito esforço ou dedicação. Pior ainda, ele sente que seu êxito, se optar mesmo pela carreira artística, dependerá apenas da circunstância exterior de ser eleito e promovido pelo sistema. O que isso tem a ver com arte?

Monday, March 17, 2008

Mondo business


A obra acima - Hole in Your Fuckin Head, 1992, de Christopher Wool. Esmalte sobre alumínio, 274,3 x 182,9 cm - foi vendida em 2007 por 1,7 milhão de dólares. Nem o urinol de Duchamp vale tanto.

Considerando que:

1) Hole in Your Fuckin Head é uma obra que evidentemente nega a necessidade da mão do artista; é bem possível, aliás, que Wool tenha encomendado a peça a uma equipe de assistentes, sem colocar a mão na massa.

2) nada, concretamente, diferenciaria uma cópia do original - a única diferença seria um "certificado de autenticidade" fornecido pelo artista, para dar alguma satisfação ao comprador; mas os dois objetos seriam efetivamente idênticos... (eu deveria me estender um pouco aqui, mas basicamente: sem a mão do artista não existe aura, como admitiu o próprio Joseph Kosuth, um dos gurus da arte conceitual; como a obra está na idéia, a sua materialização é contingente, e a obra pode ser repetida inúmeras vezes, desde que obedecendo às especificações do artista).

Pois bem, só por curiosidade decidi investigar quanto custaria encomendar uma obra igual, nas mesmas medidas, com os mesmos materiais empregados etc: sairia por cerca de mil reais. Será que estou maluco ou alguém fez um mau negócio? Melhor seria comprar diretamente o certificado de autenticidade e expô-lo na parede, porque um objeto exatamente igual se encomenda na esquina.

Vejam a que ponto chegamos: para enquadrar um procedimento anti-comercial (a produção anônima de um objeto "industrial" como uma placa de alumínio) na lógica especulativa, o sistema é obrigado a lançar mão de "certificados" que comprovam que aquilo é uma obra de arte: sem esses certificados, a arte não existe, e não há especialista que distinga o original da cópia (justamente porque esse tipo de procedimento também conmbate a idéia de original). Mas tentem encomendar na esquina uma cópia de um quadro de Matisse por mil reais, que seja indistinguível do original. Impossível!

Só não encomendei meu próprio Christopher Wool, aliás, porque não combina com a minha sala. Mas me apropriei da expressão "Mondo business", usada pelo Palumbo no post abaixo!

PS Desenvolvendo um pouco a questão acima: mesmo que se consiga distinguir o Christopher Wool encomendado na esquina daquele que foi comprado por 1,7 milhão de dólares, isso não muda o fato de que seriam duas peças igualmente sem aura, sem profundidade, sem a mão do artista. É claro que Wool só reconheceria como autêntica a obra que ele vendeu, mas em que se baseia essa autenticidade? Mais uma vez, numa designação. Ele afirma que aquela é a sua obra, e a legitima, conferindo-lhe valor de troca que a minha cópia não teria.

O que está envolvido nessa questão? Saber até que ponto o anonimato da produção e, a separação entre o artista e o processo de produção de sua obra tem algum impacto sobre a noção de autenticidade e originalidade, e qual a relação que isso pode ter no valor de mercado da obra.
Filosoficamente, é uma questão interessante, que foi trazida à baila quando, em Berlim, em 1922 (!), Laszlo Moholy-Nagy pegou o telefone (uma tecnologia relativamente recente na época), ligou para uma fábrica de placas e encomendou cinco "pinturas", passando oralmente para o atendente as coordenadas de cores, geometria e outros elementos espaciais. As obras, produzidas sem o contato e sem a presença direta do artista, ficaram conhecidas como telephone paintings (imagem acima). Ora, o que Moholy-Nagy estava propondo, 86 anos atrás, era uma discussão sobre as noções de autoria e anonimato, originalidade e repetição, sobre o status cambiante do objeto artístico numa era de reprodutibilidade técnica (na expressão de Walter Benjamin).

Tanto a placa pintada de Moholy-Nagy quanto a placa pintada de Christopher Wool são materializações produzidas industrialmente por operários anônimos de uma imagem mental do artista. Como tal, não dependem de talento, técnica refinada ou virtuosismo na manipulação dos materiais, que eram, até a arte moderna, pressupostos do trabalho do artista. Paradoxalmente, os dois se mantêm fiéis a algumas convenções: mal ou bem são superfícies pintadas que podem ser penduradas na parede ou expostas numa galeria - e comercializadas e colecionadas, naturalmente.

Ou seja, Hole in Your Fuckin Head é uma obra que, em diversos aspectos, se mantém fiel à tradição mais conservadora da arte: é uma tela, é pintado, pode ser pendurado na parede, pode integrar o acervo de um museu ou galeria, pode ser comprado por um colecionador. Ou seja, faz tabula rasa de todas as contestações a essas convenções da arte operadas ao longo do século 20. Mas, por outro lado, nega a necessidade da técnica, do talento, do domínio da linguagem pictórica etc. Trata-se, de certa forma, da transformação da pintura na produção de mercadorias impessoais, como posters - só que numa estrutura sofisticada, que preserva as antigas idéias de autoria, exclusividade e distinção associadas às obras de arte do passado - e com base nas quais se estabelecem as cotações.

Por tudo isso, segue outra obra de Christopher Wool, com uma mensagem endereçada ao seu público: "TOLO"

PS. Outro aspecto merece ser abordado. Tudo o que poderia ser alegado em defesa de Christopher Wool com base numa suposta originalidade também perde o sentido, diante do fato de que coisas muito parecidas - como acontece freqüentemente na produção artística contemporânea - já foram feitas mais de 40 anos atrás!. Por exemplo, na década de 60 John Baldessari empregou a mesma idéia, os mesmos materiais e até a mesma ironia para produzir as obras abaixo. Além disso, tampouco Baldessari sujou as mãos: contratou um pintor de letreiros para executar sua obra - dentro don que se propõe, aliás, muito mais interessante que a de Wool.

Depoimento do Palumbo

Mandei um pequeno questionário ao Angelo Palumbo, que mandou um grande texto como resposta. É o relato pessoal da experiência dele, acredito que representatia de uma boa parcela de sua geração - e de uma situação freqüente no mundo da arte no Brasil.

Como artista plástico, Palumbo realizou individuais e coletivas pelo mundo afora: Universidade do Marrocos, no Museu de Arte Contemporânea em Taipei-China, L’Usine em Geneve-Suiça, no Museu Alchimia de Design de Milão, na Ariel Gallery em Nova York-SoHo e na Bryant Library em N.Y., expôs no Art Museum de Xangai-Pequin e ganhou o 8o Salão Paulista de Artes Plásticas de S.P (prêmio aquisição). Expôs individualmente no MAM de S. Paulo, no Museu de Fotografia Contemporânea na cidade de Brescia- Italia e entrou na coleção Polaroid International, a convite daquela instituição, em sua sede em Massachussets.
Também expôs seus trabalhos no Palácio da Sourbonne em Paris e, a convite da Secretaria da Cultura do Estado, realizou individuais no MIS- Museu da Imagem e do Som e na Fundação Benito Calixto (Pinacoteca de Santos). Doou uma obra sua para o acervo do MASP a pedido do então falecido Diretor, Pietro Maria Bardi. Em 97 Participou em da Exposição LUZ, evento organizado pelo Museu Virtual Casa das Rosas cujas obras eram expostas pela Internet no site da Casa das Rosas.

Por fim, finalmente descobrindo que a arte não é uma corrida de cavalos mudou-se para Amsterdam – Holanda em 98, onde trabalhou intensamente até o ano passado, em seus projetos pessoais unindo Arte-Ciência e Comunicação.

Seguem as perguntas e, em seguida, o texto que ele enviou.
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- quais eram exatamente as regras do jogo para um artista em ascensão nos anos 80? como você viveu isso?
- o que mudou de lá pra cá?
- conte como foi voltar e ver que as portas estavam fechadas? como isso se deu na prática?
- quem manda no mundo da arte hoje?
- como você vê o papel da crítica, do marchand, do curador, do galerista e do colecionador?
- você tem um currículo impressionante, com exposições em vários países. continua vendendo suas obras?
- em que situação se encontram os artistas de sua geração: eles se renderam ao sistema e ao mercado? desanimaram? ou é possível manter-se fiel a um projeto artístico e continuar vivo no mundo da arte? cite exemplos.
- como avalia o trabalho dos artistas brasileiros mais conhecidos hoje?

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Respondo suas perguntas numa só resposta, acho melhor tomar uma Kaiser antes:

Nenhuma, não havia regra! O que existia era um grupo de artistas que se reuniam na noite pra baladinha, e discutíamos a falta de perspectiva na cultura nacional e nas artes plásticas... Mas isso era nas artes de modo geral, inclusive na música. Não havia espaço para artistas da contracultura e do underground. O que havia eram artistas, filhos da resistência à ditadura, já consagrados num sistema engessado pela repressão, ou havia o foclore do povo. Um imenso “GAP”! Nossa cultura só existia apartir da música.

Éramos jovens da classe media-alta, de cultura extremamente eclética, muito antenados com a ferveção cultural internacional. Éramos muito ligados à música, ao rock especificamente. Fazíamos cenários, capas de discos, revistas e toda parte visual daquele universo...

Porém a falta de oportunidade no mundo das artes-plásticas “main stream” assolava minha geração. Por conta disso, dispostos a emergir, mesmo que na contracultura. nosso campo de ação então passou a ser as ruas e os espaços públicos... nascemos todos de uma só vez, provenientes de todos os cantos da cidade, frutos da insatisfação e rebeldia, porém positiva e construtiva... aproveitamos a vacuidade política daquele momento, devido à transição para a democracia, para tomar de vez as ruas com tintas e pincéis!

Já que Maomé não vem à montanha a montanha iria a Maomé... pura contracultura. Surgiram então alguns grupos de trabalho, já que era uma tarefa árdua e perigosa se expor nas ruas. Não grafitávamos à moda americana, pintávamos com tinta látex e pincéis os enormes espaços em branco”. Nem todos produziam assiduamente ou se dedicavam à aparente desobediência civil, alguns como eu, eram minimalistas e extremamente introspectivos, porém o que nos tornava uma unidade era a impetuosidade juvenil e a criatividade a flor da pele.

A partir daí ficamos conhecidos no pretendido meio artístico, não pelos galeristas e curadores, mas pelos próprios artistas que realmente apreciavam e entendiam nossa postura e nossa arte... (naquela época não existiam curadores, eram todos pretendentes a artista). Passamos então a freqüentar o jet-set paulista... agora estava perfeito... prestigiados circulávamos credenciados por eles entre vernissage e as festas de arromba do salão da bienal. E, melhor ainda, pelo novo momento político de transição não éramos mais perseguidos pela ronda ostensiva noturna e não éramos mais fichados como anarquistas nas delegacias de policia.
Uma importante vitória para a Arte nacional Contemporânea!! (isto deveria fazer parte da memória histórica da arte desse país!)

Foi nesse ambiente, inebriados por sexo, drogas e rock n’roll que deixamos a parte importante de lado, o profissionalismo. Não que não trabalhávamos, mas pagávamos nossas contas com as capas de discos, cenários e revistas do universo musical... porque como artistas continuavamos fora do mercado. Além disso, o rock nacional estava na crista da onda, ninguém tinha tempo para lobbies oportunistas e hipócritas, éramos legítimos artistas da contracultura.

A situação começou a mudar quando Aracy Amaral e Satamine, inteligentes e antenados (acho que perceberam o tremendo GAP existente) lançam a CASA SETE... mas só havia espaço para eles... Porque no Brasil é assim, ou tudo ou nada... É a cultura do modismo fabricado... se não é mais rock passa a ser axé music, exaurido axé vira pagode, do pagode ao funk... sempre fechando as portas atrás e sempre sugando na mesma teta. Aqui em nosso país só existe espaço para uma coisa de cada vez, o mercado era restrito. (Isso mudou um pouco ao ingressarmos no consumismo voraz da mudança de milênio, hoje tudo pode ser mercado de consumo).

Descontentes com a situação e conscientes da ilusão que vivíamos, muitos de nós migraram para o exterior... eu incluso... Ledo erro fatal!!

Com a democracia instalada havia necessidade de uma cultura pulsante, ativa e jovial, era o grande “Boom”... Era a vez dos jovens!

Tudo muito oportuno, pois o mondo business havia chegado... Era a época, dos investimentos e negociatas, época em que o caixa dois foi institucionalizado, época do desvio de verbas e do então senhor de todas as transações, o LOBBY de interesse!

Os oportunistas, da corte, de plantão e os expertos assumiram. Os falsos artistas, privos de talento e frustrados com o real valor que o artista tem na nossa sociedade, migraram então para a curadoria já que as posições lhes aferiam o status que buscavam. Estavam eles assim também tomando posição na engrenagem... Aqueles poucos galeristas pioneiros, não sei como, resistentes aos anos de repressão, começaram a assumir eminente prestigio e poder... incrementando as vendas e passando a ditar o mercado... E para fechar o ciclo, não menos importante... as escolas de arte tinham que se adequar à nova Era... a Era corporativista, a Era do ganhar dinheiro! O tal do consumismo voraz.

A FAAP, então, muito bem estruturada, montou sua estratégia e saiu na frente, tinha de crescer e conquistar seu poder nesse universo... iria fornecer os novos talentos ao mercado garantindo-lhes o titulo de berço das artes. Lia-se nas entrelinhas: “se quiserem ser artistas de sucesso inscrevam-se aqui”... outras escolas de arte não tiveram tal visão aguçada e ficaram no segundo escalão... o escalão que fabricaria os artistas mais alternativos e sonhadores.

Quem estava no exterior fora do esquema, como eu, dançou. Quem estava aqui na corte, por oportunismo ou pelo LOBBY, bem ou mal se situou no rabo de algum galerista desgarrado.

Nesse novo cenário, uma horda de artistas bebês, imaturos e arrogantes surgiu, (cópias descaradas de Basquiat, de Naun June Paik, Jeff Koons e outros artistas da era “fashion”). Eles saem já com seu galerista de plantão, com um critico a tira-colo e um curador lhes rezando amém... E por incrível que isso pareça, estes já tem até o status de ser considerados “Os 10 + Contemporâneos”!! (como eu vi outro dia no Instituto Tomie Otake! Pasmem!).

Sim porque o brasileiro tem pressa, quer o sucesso imediato, assim, sem pesquisa, sem suor e principalmente sem vivência alguma! Toscamente elegemos sempre uma musa – a musa do seqüestro, a musa do mensalão, a musa das artes plásticas, e assim vai... a musa gostozinha do que se fala no momento... Pessoas acima dos 35 e fora da midia já eram!!

Nessa engrenagem do mondo business, estruturada na desinformação que se encontra nossa juventude, especialmente no que se refere a mercado de trabalho, nutre-se a falsa impressão...de que o artista tem aquele glamour... falso... que são rodeados de gentes bonitas desfilando seu prestigio entre as salas da corte, queimando notas de dólares entre caras e bocas do São Paulo Fashion Week... Não percebem que a arte não se traduz em sucesso mundano ou em modismos manipulados pelo marketing que insiste em sucatear a nossa arte e a nossa cultura entre lotes promocionais da iniciativa privada (que logicamente rendem prêmios, incentivos fiscais, transações ou alguma espécie de poder).

O que estes bebês, subprodutos de revistas de arte importadas, mal saídos do berço acadêmico, estão apresentando como arte é uma simples re-leitura do que já tem sido feito lá fora. Uma re-leitura porca e deslavada ... mas não importa, desde que esse moto-perpétuo seja mantido tudo bem... Pois os que tem dinheiro para comprar arte nesse país geralmente são ignorantes sem cultura alguma mas pretende dizer que tem, pois absorve tudo que vê no eixo New Yok – Miami. ou então, são os grandes figurões ostentadores com suas instituições descarregando imposto e acionando o caixa dois do super faturamento.

Talento e criatividade não valem nada pois a arte de agora é hermética, asséptica, totalmente subjetiva e comercial, feita propositalmente para não mais nos sensibilizar pela emoção e pela poesia pois assim fica difícil do comprador final dizer o que acha da obra. (com medo de parecer ignorante!) o LOBBY é de extrema importância nos tempos de hoje... Aqui, saber vender o peixe e saber entreter as pessoas te garante lugar ao sol. Diante dessa realidade é preciso um outro tipo de artista. O artista negociante e experto, um talentoso “Rippley” (quem já viu o filme?) em rir e debochar.

E o espetáculo assim continua... La nave va!

Todos loucos descontrolados, histéricos a festejar antes do desastre eminente. Alguns amigos meus, que pertencem ao seleto Olímpo artístico contemporâneo nacional, têm mais convites do que possuem de pesquisa pessoal! Já vi muitos deles no desespero de não saber o que apresentar! Uau hein?!

Não sei quem pensa estar no topo dessa ilusória pirâmide social, feita de lixo reclicado. O artista com sua falsa impressão de ser celebridade, (mas vez ou outra vende alguma coisa), o galerista que se julga tremendamente aculturado pois indica o que é ou não é arte, (e não sai da poltrona para investigar se realmente sabe), ou o colecionador que a titulo de status queima sua grana ostentando um séqüito enorme de aproveitadores oportunistas... O curador? Este circula na tangente orbitando entre o artista, o galerista e as instituições, tendo seu lugar ao sol somente quando estes se alinham em conjunto com a mídia num eclipse qualquer, quando eventualmente resolve aparecer.

Estamos vivendo uma enorme crise geral de identidade nacional, pior que isso, uma crise moral, todos os setores estão corroídos e corrompidos... e na arte, além disso, estamos vazios e sem personalidade própria.

Somos muito primários como nação. O brasileiro ainda tem a índole do esperto oportunista, do ladrão, do aproveitador que como um câncer devora a estrutura de nossa inteira sociedade, em nome de do enriquecimento ilícito a custa de um povo indefeso, sem educação e sem senso critico, incapaz de lutar e exigir seus direitos, numa verdadeira cultura de “Miami Vice” !!

Arte é tradição, história, educação e cultura. A arte é a principal herança de um povo... e só poderemos sair da condição de país emergentes (entende-se sub-desenvolvidos) quando tratarmos esses assuntos com seriedade e respeito. E não essa cultura de apropriação de talento indevida.

Mas até quando? Quem é que se dispõe a sair do esquemão e iniciar uma real pesquisa a fundo sobre a nossa arte contemporânea autêntica? Quem é que se dispõe a levantar e chacoalhar fora essa torpor mental e arriscar seu prestigio?

Tempos selvagens!

Aquele artista autêntico, que é autodidata, aquele que percorre a vida toda sem saber que é artista, que experimentou todas as técnicas antes de achar a sua própria, aquele que pesquisa e vivência sua arte ao longo de toda uma vida... Artista que idoso e calejado traz na bagagem o mérito do reconhecimento, esse se perdeu pra sempre. Nessa selvageria foi substituído de vez pela jovial agressividade competitiva do consumismo voraz.

Porém, um momento. Ele não está morto de todo, marginalizado, ele ainda continua a ganhar seu pãozinho pela borda da pizza em algum canto escuro confeccionando estúpidos sites na WEB ou vendendo pequeninos utensílios de escritório em cerâmica e expondo em bares e restaurantes da cidade.

Vejo que a arte nacional parou ali onde paramos nós da minha geração, na mesma ilusão que um dia nos seduziu. Na maldição do vislumbre “wanna be” das aparências superficiais!

Então, a conclusão que resulta de tudo isso, é que o nosso salto quântico que achamos ter dado adiante, na verdade foi para trás e parou no mesmo lugar... o vazio ainda está lá!

Nesse contexto, o que eu posso mais pretender da arte, senão tristemente virar a página?

Felizmente, por ter compreendido que arte não é corrida de cavalo, ganhei o mundo. Resolvi investir em mim como ser humano com minha experiência vivenciada transparente. Vivo fazendo minha artezinha, mínimal, como pessoa livre de interesses obscuros e hipócritas movidas por ganância.

Não quero ser conhecido pelo que fiz, mas pelo que sou!
Atualmente, faço parte do grupo dos artistas... que “são os mestres do vir a ser” (como profetizou Aguilar uma vez), aguardando tempos melhores.

Sou o Palumbo, muito prazer!

São Paulo, verão 2008

Sunday, March 16, 2008

O mercado de arte contemporânea (2/8)

Arte contemporânea é um bom investimento? De tudo o que tenho lido sobre o caráter especulativo e os aspectos financeiros do mercado, só consigo chegar a uma conclusão: é impossível chegar a uma conclusão. As avaliações são as mais desencontradas, já que se trata de um mercado altamente volátil, no qual as obras nem sempre estão disponíveis, no qual uma mesma obra pode apresentar diferenças brutais de preço se for comprada num leilão ou numa galeria, no qual a escassez de regulamentação e o número limitado de agentes poderosos dá margem a diversos tipos de manipulação etc.

Para quem tiver informações privilegiadas, com certeza arte contemporânea pode ser um ótimo investimento - mas isso funciona para qualquer tipo de especulação. Mas trata-se de um mercado com um comportamento particularmente irracional.

Por exemplo, uma foto de Richard Prince - The entertainment series: Russel - que valia 11.500 dólares em 1993 foi comprada por 75 mil dólares em 2004. E a primeira obra de Damien Hirst que foi a leilão, a instalação God, em 1992, foi comprada por irrisórias 4 mil libras. Seis anos depois, a mesma instalação foi revendida por... 170 mil libras. Hoje deve valer milhões. Mas isso jamais aconteceria se o mega-colecionador e galerista Charles Saatchi não tivesse apostado nele e outros artistas de sua geração.

"Apostar", no caso, é modo de dizer: Saatchi adotou esses artistas, deu a todos eles o Turner Prize, que ele controlava indiretamente, promoveu mega-exposições e depois vendeu suas obras a preços estratosféricos. Não é à toa que Saatchi fez fortuna como publicitário e marketeiro (de Margaret Thatcher, por exemplo), antes de se dedicar ao múltiplo papel de colecionador, galerista e mecenas. Saatchi produz, coleciona, legitima, divulga e depois vende. Hirst, neste sentido, não foi uma descoberta: foi clara e abertamente uma invenção, uma fabricação. Saatchi colocou a serviço dele e seus colegas de geração recursos financeiros, seu savoir faire em matréria de marketing e, principalmente, sua rede de relacionamentos.

Um problema específico do mercado da arte contemporânea é a autenticação das obras, fundamental para a formação de preços. Como autenticar uma obra em vídeo, por exemplo, e distingui-la de uma cópia falsificada? Ou uma obra sem original, como na arte virtual? Ou um múltiplo? Ou uma obra que, por empregar material efêmero, rpecisa ser refeita periodicamente? Essa expansão das linguagens artísticas, originalmente associada a um movimento de conestação do mercado, foi reintegrada ao sistema especulativo por meio de recursos os mais conservadores: a revalorização da assinatura e dos certificados de autenticidade, entre outros traços anacrônicos e convenções do passado, que re-associam a arte, mesmo em suas manifestações supostamente mais radicais, a uma lógica de consumo de luxo e de afirmação simbólica de uma classe social.








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Saturday, March 15, 2008

Mensagem de um artista


Recebi por e-mail duas mensagens do artista plástico e fotógrafo Angelo Palumbo (www.art-bonobo.com/artes/angelopalumbo/) e tomo a liberdade de reproduzir alguns trechos. Ilustrando o post, uma obra sua, bastante elogiada pela Folha de S.Paulo em 1992.
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1. de onde voce vem e para onde voce vai?
estou adorando suas análises bem pontuadas. cada vírgula, cada ponto correspondem aos
meus sentimentos e respondem ao enigma de minha desilusao e abandono desse universo assaz em desencanto...
era um artista em ascensao, tinha tudo para o sucesso, circulava nos corredores da arte-jet-set com pompa e orgulho... sabia que o jogo era pra ser jogado,
todavia reparei que esse sucesso nao nos torna grande homens, o importante é navegar,
viver não é preciso... saí e fui viver o mundo... aprendi a ser um cidadao do mundo e, quando retornei à casa, as portas estavam devidamente fechadas para mim que nao havia mantido o lobby
(...) pertenço à 'geraçao 80'(aquela que ficou emarginada) mas que iniciou o processo de popularizaçao da arte invadindo espaços publicos em viadutos e túneis da cidade de sao paulo. em minha geração estão nomes como alex vallauri, tupinaodas, ciro cozzolino, matuck etc.
continue em seu alerta, que com certeza terá muitos ouvidos.

2. (...) ninguém busca mais descobrir ninguém: é mais fácil fabricar...
e os nossos galeristas e curadores estao acomodados em suas cadeiras de molas, bebendo pro seccos, seguindo o manual da ARTFORUM americana... copiando, copiando, ficando somente com o pior que eles oferecem... a fama e o poder, sem perceberem que por trás disso há muito trabalho e pesquisa. Os americanos pesquisam muito, demostram infinito interesse em seus artistas antes de tudo... e nao fecham as portas pra ninguém ao passarem.
aqui, eles, posudos e ostentadores, nem saem de suas geladeiras... nenhum demostra niteresse em visitar o artista em seu atelier, e decretam a morte de um artista antes
mesmo de o conhecerem.

PS O Palumbo mandou outra mensagem explicando a obra das formigas:

"Esse trabalho foi exposto em Genebra-Suiça... em baixo da pintura da formiga mor
estava escrito em branco sobre branco (por isso nao saiu na foto) : "Ordre et
Progress"... por incrivel que pareça na nota de MIL francos suiços tem no verso uma
ilustraçao de uma formiga... bem sugestivo nao eh? a exposiçao na epoca levantou uma
grande polemica sobre o porque da formiga estar na nota de mil... os suiços ficaram
revoltosos de serem comparados as formigas... insignificantes no seu individual e presos a um sistema cruel que quem lucra eh o formigueiro (estado)...

por incrivel que pareça essa eh a primeira exposiçao feita por um artista com
plotters!! essa maquina inovadora so existia 1 em toda europa... em Londres... e o
custo era uma fortuna... foi ultra complicado porque o pessoal se recusavam em copiar
uma cedula de dinheiro.... nao so isso, tambem imagine o custo para se comprar uma nota tao alta...(MIL francos suiços = 2 MIL dolares)... tive de aplicar todo meu dinheiro no banco para comprar uma simples cédula de mil... dai ficava sem um puto, por semanas... com essa cedula na mao tinha de enviar para Londres.. e esperar que fizessem o trabalho e enviassem de volta a cedula intacta... para depois dai correr de volta pro banco pra redepositar na minha conta... e poder viver...foi uma dureza!! foi assim ate sair a exposiçao...

hoje o plotter eh carne de vaca, qualquer bureauzinho grafico de esquina faz...
mas essa tecnica me rendeu muitos louros e muitas tristezas... desapontamentos...

O mercado de arte contemporânea (1/8)

"The economic aspect of conceptual art is perhaps the most interesting. From the moment when ownership of the work did not give its owner the great advantage of control of the work acquired, this art was implicated in turning back on the question of the value of its private appropriation. How can a collector possess an idea?"
Seth Siegelaub, 1973

O paradigma de um mercado de arte com regras feitas para valorizar obras únicas, criadas por artistas independentes, começou a vigorar na Europa no final do século 19. Esse modelo tinha como um de seus fundamentos obras de arte individuais, relativamente fáceis de serem guardadas ou colecionadas.

Ora, com os movimentos de vanguarda que surgiram nas décadas de 60 e 70 do século passado (não é estranho falar do século 20 como século passado?) esse conceito de mercado sofreu traumas profundos. Experiências as mais diversas expandiam o campo da linguagem artística de forma incontrolável: a arte já não cabia nos moldes pre-estabelecidos do Modernismo; a rigor, talvez não coubesse nem mesmo na idéia convencional de "obra", submetida às críticas mais pesadas.

Ao mesmo tempo, denunciava-se o caráter ideológico dos museus e galerias, que num determinado momento pareciam estar com os dias contados. A desmaterialização, a desestetização, o questionamento da própria idéia de autoria e outros processos estavam implícitos em "obras" que eram múltiplas, efêmeras, gigantescas, especificamente situadas, imateriais etc. Levados às últimas conseqüências, esses processos colocariam efetivamente em risco o mercado e as instituições - independentemente da qualidade propriamente artística de suas propostas.

A realidade é uma maçaroca confusa, na qual se entrelaçam sempre múltiplos movimentos. Mas vale a pena tentar destrinchá-los. Existe um debate que se dá em torno da validade das propostas radicais dos anos 60 e 70, entre elas a da fusão entre a arte e a vida, e suas conseqüências para a produção artística posterior. Até onde entendo, é a questão sobre a qual se debruça Ferreira Gullar, por exemplo, quando considera que aquelas propostas conduziram à destruição da própria linguagem artística.

(Parêntesis: concorde-se ou não com Gullar, quem ler sem preconceitos seus livros Etapas da arte contemporânea e Argumentação contra a morte da arte verificará que sua argumentação é sólida, consistente, bem informada. Além disso, Gullar foi protagonista do movimento neoconcreto, decisivo para os desdobramentos posteriores da arte brasileria: considero incompreensível o ódio e o desrespeito com que muitos artistas se referem a ele, mesmo sem terem lido seus textos.)

Mas existe também outro debate, diferente, que diz respeito não propriamente à discussão artística, mas ao desenvolvimento histórico-sociológico-econômico da produção artística recente. É nesse debate que se insere uma questão fundamental, que venho tentando desenvolver aqui: como se explica que a arte radical e contestadora dos anos 60 e 70 tenha resultado na arte integrada, conservadora, domesticada, capitalista no mau sentido, que explodiu dos anos 80 para cá? A resposta a esta pergunta não pode ser dada só do ponto de vista do artista, nem do crítico de arte: ela está relacionada com uma reflexão mais ampla sobre a cultura e a sociedade - como a que fez, por exemplo, o sociólogo Pierre Bourdieu.

Em linhas gerais, eu resumiria a situação assim: das vanguardas e experiências radicais dos anos 60 e 70, o artista contemporãneo só preservou a pose e a atitude, ao mesmo tempo em que deu às mãos a um sistema especulativo e manipulador, no qual a arte é o que menos importa, ou melhor, importa como pretexto para o sistema funcionar.

Há exceções, mas o padrão de sucesso para o artista jovem hoje não é mais realizar uma obra relevante, que combine talento e técnica - até porque lhe ensinam nas escolas que isso não é mais possível, nem mesmo desejável - mas sim ser assimilado por um sistema que lhe proporcione exposição na mídia, viagens a feiras internacionais, em suma, entrar no clube. E quais são os modelos que o sistema oferece? Coelhinhos de alumínio, tubarões em formol, instalações sobre o nada. Antigamente a gente ia nos museus e via estudantes de arte copiando as telas importantes, para aprimorar a mão: hoje os próprios professores dizem que saber pintar é besteira.

Boa parte da arte de sucesso que se produz hoje implica técnicas de produção caras, equipes de assistentes e, naturalmente, financiadores: mal comparando, a arte se aproximou da indústria cinematográfica, em que o poder dos produtores é cada vez maior (não é à toa que o cinema de arte morreu). O artista, ou alguém ligado a ele, precisa convencer um patrocinador a comprar uma "promessa" de obra. O patrocinador, por sua vez, muitas vezes acumula a condição de colecionador, conselheiro de instituição, ou mesmo curador. É toda uma rede de funções com um objetivo comum: mais do que o lucro, a reprodução do sistema, e seria ingênuo acreditar que grandes corporações comprem ou patrocinem obras realmente contestadoras, não assimiláveis e mercantilizáveis.

Reconheço que hoje é difícil produzir uma obra assim. O sistema deu um jeito de se apropriar de todas as manifestações artísticas que supostamente não caberiam numa coleção - "coleção" é outro conceito fundamental para o mercado. Os múltiplos, as performances, as instalações, as obras efêmeras ou industrialmente reproduzíveis, as obras ambientais ou especificamente situadas: para tudo se encontra uma maneira de enquadrar, expor, valorizar e vender, mesmo para aquelas propostas que colocavam em causa a própria possibilidade da coleção. As instalações e pergformances, por exemplo, de propostas anti-sistema, passaram a ser ferramentas de marketing para a promoção do artista num mercado globalizado, onde o primeiro deafio é chamar a atenção.

A fotografia foi duplamente útil: primeiro, como "traço" de obras conceituais ou da Land Art, com sinal ou registro de que a obra existiu; segundo, assumindo ela própria o status de obra de arte. Hoje fotos de Andreas Gursky ou Cindy Sherman podem valer quase um milhão de dólares. A foto do cowboy abaixo, de Richard Prince, foi vendida na Christie's em novembro de 2005 por... 1,1 milhão de dólares.

Como se vê, o problema da reprodutibilidade da fotografia foi rapidamente resolvido pelo mercado: tiragens limitadas, numeradas e assinadas "fabricam", por assim dizer, uma aura de autenticidade que justifica as cotações milionárias. Em alguns casos, para se garantir a raridade da obra, os negativos são destruídos. Evidentemente, isso já é uma forma da manipulação do valor, pois milhares de fotografias idênticas reproduzidas do mesmo negativo não teriam valor algum, e não haveria original, nem obra. (É claro, por outro lado, que as falsificações de fotografias são muito mais fáceis que as de pinturas: Man Ray foi vítima de várias falsificações, por exemplo.)

O importante é notar que as estratégias de difusão prevalecem cada vez mais sobre a discussão da obra em si. O artista cada vez mais se assemelha a oturas categorias profissionais cujo êxito depende sobretudo do marketing. Para um artista de instalações, que dificilmente venderá sua obra a colecionadores individuais, ser adotado pelo sistema é uma questão de vida ou morte; mas, uma vez instalado numa instituição importante, poderá entrar num circuito de exposições e de mídia que aumentará o valor outras obras suas, mais vendáveis.

Em suma, é uma teia de canais comunicantes, de portas que se abrem e se fecham, de redes de relacionamento, de fluxos de informação e circulação de valores nos quais as qualidades intrínsecas da obra importam pouco. Ilude-se o artista jovem que acreditar que a qualidade de sua obra produzirá o ingresso nesse sistema; ao contrário: será sua capacidade em estabelecer os laços com as pessoas certas do sistema que fará sua obra existir - como produto.

Isso não é simples, claro. Nessa rede imaterial de relacionamentos, tudo é passível de se transformar em moeda de troca. Propostas indecentes são aceitas com entusiasmo e gratidão, porque não há alternativa. Desta forma, um marchand pode pedir ao artista obras "em doação", sem desembolsar um centavo, em troca da promessa de abrir determinados canais; um colecionador pode pedir desconto de 90% numa obra, já que o simples fato de figurar em sua coleção será bom para o artista. Isso sem falar nos freqüentes "beiços", golpes, rasteiras e traições tão freqüentes no cotidiano real do mundo da arte no Brasil, que fariam a delícia de um Truman Capote tupiniquim.
Sexo e drogas também podem ser moeda, da artista bonitinha disposta a tudo ao artista fornecedor de aditivos nasais, ou vice-versa. Mas isso não acontece só na arte, é claro.

As galerias são um capítulo à parte. O que tenho ouvido de histórias escabrosas de bastidores já daria um livro, mas mesmo o que acontece abertamente já é impressionante. O que me parece certo é que o artista está sempre no lado mais fraco da corda e, por isso, se submete às piores práticas. Há pouco tempo um artista viu numa revista a foto de uma estrela televisiva com um quadro seu pendurado na parede da sala de casa: como ele não sabia que o quadro tinha sido vendido, entrou em contato com a galerista (geralmente são mulheres). O quadro tinha sido "alugado" para a matéria, sem que ele fosse avisado.

Uma historinha boba, mas representativa de como as coisas funcionam: é um mundo cheio de segredos e mentiras, na qual fica até difícil avaliar quem está se dando bem. Assim, se sai no jornal a informação de que determinada obra foi vendida por 100 mil reais, ela pode ter sido vendida na verdade por 10 mil, ou por 200 mil, e o artista ter recebido a décima parte do valor. Ou nem ter sido vendida. A atitude que prevalece é a de mistério: "Preferimos não divulgar os valores", declarou uma galerista sobre as obras que vendeu na ARCO. Se num evento patrocinado por dinheiro público prevalece o sigilo, imaginem nas negociações privadas, num mercado desregulado (mas cujos agentes teriam, de qualquer forma, obrigações com a Receita).

O impasse europeu


Mudando de assunto, saiu hoje no Idéias, do JORNAL DO BRASIL, uma bela entrevista com o historiador Walter Laqueur, sobre o livro OS ÚLTIMOS DIAS DA EUROPA. É uma leitura fundamental, que ajuda a entender o que está por trás da questão dos imigrantes. Deveria estar em todas as livrarias. Segue a entrevista:
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ENTREVISTA/ Walter Laqueur
O fim anunciado do Velho Mundo
Historiador lança polêmica sobre a falência da política de integração na União Européia

Henning Höhne/CIENTISTA POLÍTICO

O historiador alemão Walter Laqueur causou polêmica na Europa ao lançar Os últimos dias da Europa: epitáfio para um velho continente, que chega ao Brasil pela Odisséia. Acusado de cético, pessimista e até reacionário, mas também aclamado como corajoso, o historiador defende a tese de que a Europa, tal como a conhecemos, acabou. O romantismo, a cultura, a sagacidade das estratégias políticas e econômicas, a terra das conquistas, do charme, da erudição... c'est fini. O que sobra para o século 21 é um continente reduzido, acuada por imigrantes, desemprego e instabilidade econômica, que se escora em uma nuvem de glamour que só engana aos turistas. Para quem duvida, ele convida a um passeio por Neukölln ou La Corneuve, periferias de Berlim e Paris ­ "apenas uma amostra do que vem por aí".

Um dos primeiros argumentos para sustentar a tese sobre o fim da Europa é a ensidade populacional. O senhor diz que os países pouco populosos são mais flexíveis, mais fáceis de administrar. Por outro lado, no entanto, o senhor reclama da baixa taxa de crescimento demográfico da Europa. Qual é o problema, afinal? ­ WALTER LAQUEUR: Eu não reclamo do declínio populacional da Europa. O fato de um país ser pequeno, reduzido, traz vantagens em diversos aspectos. Mas não politicamente, se você quiser jogar as regras do mercado mundial. Não sei o que significará uma população imensa em 2100 ­ tudo o que eu sei é que hoje, e em um futuro próximo, isso será precondição para influência e poder. Se um país ou um continente não tem tais ambições, não há com o que se preocupar.

Em outro argumento, o senhor fala sobre o aumento dos índices de violência. E relaciona os índices aos jovens e, sobretudo, aos muçulmanos. No Brasil, jovens cometem crimes também. E não são muçulmanos. Qual a relação entre violência-islamismo-juventude?
LAQUEUR: ­Os crimes, especialmente os violentos, são sempre cometidos por gangues de jovens. Isso não é surpresa. Mas é interessante que a porcentagem de jovens de origem estrangeira nas prisões na França, Inglaterra e Alemanha, por exemplo, seja muito maior do que a parte da população em geral predominantemente muçulmanos. Existem muitos imigrantes indianos na Inglaterra, mas muito poucos na prisão. Muitos imigrantes poloneses na Europa Ocidental, mas dificilmente algum criminoso. Gangues de rua não controlam um país, mas eles podem controlar partes da cidade e Províncias. E uma vez que isso fuja do controle do Estado, provoca problemas políticos graves. A elite ainda detém o poder, mas quase sempre abdica ou fica dividida, e perde a auto-confiança.

Segundo o autor, a União Européia ainda não tem capacidade para uma integração adequada diante do volume de estrangeiros: 'O debate deve se dar em torno dos valores da Europa que podem ainda ser salvos, não
da Europa como a superpotência moral do século 21. Acabou a era das ilusões'


Enquanto os Estados Unios ainda não encaram o problema decorrente das mudanças climáticas, os Estados europeus desenvolveram tecnologia própria, limpa, e revendem para todo o mundo. Este é um exemplo. O senhor realmente acredita que a Europa tenha uma má performance econômica?
LAQUEUR:­ Eu concordo, os EUA ainda fazem muito pouco pelo meio ambiente. Mas as perspectivas econômicas não são boas. Eu não digo que haverá um colapso ou coisa semelhante. Mas os líderes europeus estavam muito mais otimistas há três ou cinco anos. Os Estados Unidos estão diante de uma crise. E a previsão dos especialistas para a Europa em 2008/2009 não são melhores ­ são piores. Se houver uma depressão nos EUA, a Europa vai sofrer mais do que os americanos. As tendências observadas neste estudo ­ o problema da demografia, o adiamento do movimento em direção à unidade européia e a crise do Welfare State ­ surgiram bem antes da virada do século. O debate deve se dar em torno dos valores da Europa que podem ainda ser salvos, não da Europa como um exemplo esplendoroso para a humanidade, a superpotência moral do século 21. Acabou a era das ilusões.

O que já deu certo na União Européia? O que o senhor reconhece como melhoria?
LAQUEUR:­ Não vi progresso na Europa no campo de defesa internacional nos últimos 30 anos. O que funcionou na Europa ­ acima de tudo, a economia ­ e, claro, a preservação da paz interna. Mas isso teria acontecido de qualquer forma.

Clinton, Obama ou McCain. Nas eleições americanas, quem seria a melhor escolha para o futuro da Europa?
LAQUEUR:­ Sob um ponto de vista europeu, Obama será ruim, porque ele parece ser economicamente protecionista. Mas não acredito que o resultado das eleições americanas seja tão definitivo para a Europa, para o impacto político-moral da Europa. Hoje haveria uma leve influência em alguns países do Leste Europeu, mas sem o mais leve impacto na Rússia. Tudo o que estou dizendo é que a influência geral da Europa na política mundial diminuiu e vai diminuir cada vez mais.

O seu pessimismo não é um desespero político? ­
LAQUEUR: Não sou um pessimista. Sim- plesmente tento dispersar certas ilusões. Comento o mundo dos negócios há anos e, em geral, estive mais certo do que errado. Talvez eu esteja errado dessa vez, mas eu vejo muito pouca esperança. Meu sentimento é mais de arrependimento do que de desespero ­ a Europa podia ter ido melhor. Existe o risco, depois de se haver negligenciado as ameaças à Europa por tanto tempo, de se erguer as mãos em desespero e aceitar com resignação o papel futuro de um museu de história da civilização para uma platéia inexistente. Mas tenho filhos, netos e bisnetos na Europa, e se minhas previsões estiverem erradas devo sofrer agradecido o estrago com a minha reputação.

Perfil/ Walter Laqueur
Nascido na Alemanha, o historiador Walter Zeev Laqueur tem 86 anos. Judeu, foi vítima do Holocausto com sua família e fugiu para os Estados Unidos, onde se naturalizou. Professor da Geogetown University, é autor da Enciclopédia do Holocausto .


Os últimos dias da Europa, de Walter Laqueur. Tradução de André Pereira da Costa. Odisséia Editorial. 200 páginas, R$ 34,90

Friday, March 14, 2008

As regras do jogo

Desde que comecei a escrever sobre arte, deixei claro que minha intenção aqui não é fazer crítica, mas investigar de que maneira a arte contemporânea chegou ao estado atual - o que implica refletir sobre a dinãmica do mercado, o funcionamento das instituições, a fundamentação teórica do que está sendo feito etc. A maioria das pessoas que entrou em contato com o blog entendeu isso - o que inclui artistas consagrados, como Gonçalo Ivo, Gianguido Bonfanti, Ivald Granato, Antonio Veronese etc. Não conheço pessoalmente nenhum deles, nem sequer elogiei seus trabalhos: nossa comunicação se estabeleceu exclusivamente por meio de idéias, do sentimento comum de que é necessário pensar criticamente sobre determinadas questões.

Centenas de outras pessoas têm enviado mensagens com o mesmo espírito: muitas vezes, aliás, discordando do que escrevo, contestando o que digo, trazendo novas informações etc. Isso se chama diálogo: comunicação que enriquece as duas partes e as faz pensar. Por tudo isso, não canso de me surpreender quando chegam manifestações hostis, sobretudo de pessoas que, até por dever de ofício, deveriam gostar do debate. Essa negação talibã do pensamento traduz duas coisas: autoritarismo e burrice. Não sei qual das duas é pior.

Essa atitude não é nova: já em 1998, dez anos atrás portanto, quando Gonçalo Ivo declarou no Segundo Caderno do jornal O GLOBO que no Parque Laje os professores não ensinavam mais pintura "simplesmente porque não sabiam pintar, porque nunca aprenderam, porque o aprendizado de uma linguagem é trabalho de toda uma vida", o diretor da Escola de Artes Visuais do Parque respondeu que a escola formava artistas e não pintores, aquarelistas, desenhistas, escultores; que a época da especialização em técnicas havia acabado, que a qualidade manual havia sido substituida pela tecnologia. Consta que, nos dias seguintes, apareceram na piscina do Parque vários sapos com o nome de Gonçalo amarrado na boca...

O argumento do diretor é, evidentemente, uma idiotice, mas pelo menos ele falou com clareza. Se é esta a tese consensual hoje, que os artistas venham a público defendê-la: ninguém precisa mais de técnica, de talento, de vocação, nada. Aboliu-se de vez a manualidade, a arte virou outra coisa. Mas que coisa será essa? É isso, justamente, o que venho tentando entender aqui.

Não acredito que exista esse consenso, de qualquer forma. O que existe, ao contrário, é desinformação, confusão, uma atmosfera enevoada na qual muitos se perdem por inocência e da qual uma minoria se aproveita muito bem.

O certo é que, sem clareza não se chega a lugar nenhum. Por exemplo, no começo do mês aconteceu a feira ARCO, em Madri: o governo brasileiro gastou 1 milhão de euros para enviar uma representação oficial de mais de cem artistas. Reconheço o valor de muitos desses artistas, considero mesmo alguns deles geniais. Por exemplo, admiro bastante Abraham Palatinik, que levou à ARCO a obra abaixo:
Mas várias questões fundamentais sobre o evento não foram sequer formuladas, muito menos respondidas: isso faz parte de que política cultural? Quais são os critérios e estratégias dessa política? Que concepção da arte norteou a escolha dos artistas e galerias? Como foram escolhidos os dois curadores? O trabalho deles foi submetido a algum tipo de controle ou avaliação? O que se esperava da ARCO em termos de retorno? O resultado foi satisfatório? Qual a qualidade das obras apresentadas lá? Como a crítica local reagiu à participação brasileira? Qual foi o resultado financeiro? Que obras foram vendidas, e por quanto? Qual a contrapartida ofereida pelas galerias privadas que se beneficiaram de dinheiro público? Qual deve ser o papel do Estado e qual deve ser sua relação com os agentes privados?

Se essas perguntas fossem respondidas de forma objetiva, os próprios artistas seriam beneficiados: falhas seriam corrigidas, mecanismos seriam aprimorados, estratégias para uma política cultural consistente seriam traçadas de forma aberta e participativa. Mas parece que a ninguém interessa a transparência: busca-se sempre a vantagem pontual, imediata, muitas vezes obtida à custa de relacionamentos pessoais, da inserção nas famosas panelas e igrejinhas.

Já recebi relatos sobre artistas a quem, independente da qualidade de seu trabalho, as portas do êxito foram abertas pelas vias mais tortas - troca de diversos tipos de favores, incluindo, pasmem, fornecimento regular de drogas etc; e também sobre artistas que simplesmente não aceitaram as regras do jogo, e a quem, por isso, mais uma vez independente da qualidade do seu trabalho, as portas se fecharam para sempre.

É dessa forma que carreiras artísticas devem feitas e desfeitas? Muitos artistas que se beneficiaram desse sistema nos anos 80 e 90 estão há anos sem vender uma obra sequer, esquecidos pela mídia, mergulhados em crises pessoais profundas. Outros, que nunca se beneficiaram dele, simplesmente desanimaram, apesar de terem uma obra relevante, e foram fazer outra coisa. Outros, ainda, construíram seus caminhos à margem do sistema, ao preço de serem ignorados pela mídia e pelas instituições. Em todos os casos, a arte ficou em segundo plano.

PS 1
Em 1951, uma jornalista do Correio da Manhã perguntou a Portinari sua opinião sobre a Bienal de S.Paulo, sobre o conflito entre a tradição figurativista herdeira da arte modernista e os defensores da abstração geométrica então em voga. Resposta de Portinari: "Devemos fazer esforços para que se aprenda a pintar e que se saiba o que é pintura, e não dizer ‘sou abstracionista’ ou ‘não sou abstracionista’, sem nem saber falar numa cor! O essencial é saber pintar”.

PS 2
Achei uma matéria do Jornal do Commercio, de Pernambuco, que traz alguma informações sobre os negócios fechados na ARCO (já que a imprensa do Rio e de São Paulo não tocou no assunto). Uma frase de uma galerista me chamou a atenção: “Preferimos não divulgar os valores”. Como assim? A galeria privada vai a Madri às custas do Governo e "prefere não divulgar os valores"? Acho que é uma obrigação, não uma questão de preferência. Além do mais, qual o problema em divulgar? Medo da Receita? Voltarei em breve ao tema das galerias e seu modus operandi.

Thursday, March 13, 2008

Obrigado pela audiência

O blog ontem bateu seu recorde de visitantes únicos num mesmo dia: 242 pessoas passaram por aqui (em 378 page views).

Wednesday, March 12, 2008

Outra lagosta de Dalí

Apropriações (segunda parte)

O recurso da citação é muitas vezes empregado para ironizar a "grande arte" aprovada pelo "bom-gosto" burguês, seja or meio da dessacralização de imagens clássicas (a Mona Lisa de bigode de Duchamp), seja pela via inversa, isto é, pela elevação de objetos comuns ou de mau gosto à categoria de arte, por exemplo, na apropriação que Andy Warhol fez das latas de sopa Campbell's ou das caixas de sabão em pó Brillo. O segundo caso está associado à idéia de kitsch, termo compreensivelmente fora de moda, porque implica uma separação entre a arte verdadeira e elevada e a pseudoarte massificada: num sistema que vende Jeff Koons, supra-sumo do kitsch, como grande arte, esta separação perde o sentido.

O paradoxal é que as duas operações (dessacralização/sacralização) dependem de um reconhecimento generalizado do que é a arte que se pretende desqualificar. Ou seja, a apropriação cospe no prato em que come, ou melhor, come no prato em que cospe. É um tipo de produção que, pela própria natureza, precisa ser marginal. Quando ela se converte em mainstream, perde completamente o sentido.


Por exemplo, os surrealistas cansaram de provocar escândalo com a apropriação e combinação de elementos do cotidiano em obras de arte, como o famoso telefone-lagosta de Salvador Dalí. Essas obras só surtiam efeito em oposição a uma arte dominante na qual telefones e lagostas não tinham vez (muito menos juntos): felizmente o movimento surrealista, e antes dele o dadaísmo, eram deliberadamente marginais, isto é, contestavam os valores e as instituições da sociedade. Sua atitude negativa/destrutiva era coerente com suas obras e suas ações: suas idéias correspondiam aos fatos.

Ora, desde os anos 80, a arte pós-moderna brinca de desqualificar o projeto moderno e qualquer tipo de grande arte, mas sem abrir mão das mais convencionais formas de êxito e reconhecimento: a exposição nos grandes museus e galerias, as altas cotações nos leilões, a transformação dos artistas em estrelas. É uma atitude duplamente cínica, primeiro porque é uma arte "de segundo grau", isto é, depende de suas referências para existir; segundo porque, institucionalizados e valorizados, esses artistas continuam posando de outsiders vendendo a imagem romântica da contestação.

Tuesday, March 11, 2008

Estou na Saatchi Gallery!


Não é que Andy Warhol estava certo? Todo mundo é artista e todo mundo ficará famoso por 15 minutos - pelo menos virtualmente. Quem clicar no link abaixo verá um desenho meu (aquarela e carvão) na Galeria Saatchi - de Charles Saatchi, o megacolecionador e gênio do marketing que inventou Damien Hirst e os "Young British Artists". O desenho, como se vê abaixo, é uma bobagem de amador, mas vai que cai na graça de algum descobridor de talentos... Além disso, em tempos de arte por designação, eu designo este desenho como arte!

http://www.saatchi-gallery.co.uk/yourgallery/artist_profile//83850.html

Vinicius de Moraes


São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.

E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.

Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.

Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.

(Foto de Edward Weston)

Palestra do Vik Muniz

Para quem estiver em Nova York:

Vik Muniz: The Artists’ Visions Lecture series
92nd Street Y (at Lexington Ave)
Thursday March 13, 2008 at 8:15pm
Probably best known for his photographic image of Marilyn Monroe drawn with chocolate syrup, Brazilian conceptual artist Vik Muniz works with a variety of materials, from junk to earthworks, to create images that challenge the viewer’s notions of perception and illusion. He has had one-person exhibitions at numerous venues, including P.S. 1, the Museum of Modern Art and the Museum of Contemporary Art in Montreal and in San Diego.

Tickets are $26, $16 for College Art Association members or teachers with ID. Members, please call 212.415.5500 to order.
http://www.92y.org/

Vik Muniz Studio
47 Lexington Avenue
Brooklyn, NY 11238
United States
www.vikmuniz.net

Monday, March 10, 2008

Apropriações

“Apropriação” designa o ato ou efeito de apoderar-se integralmente ou de partes de uma obra de arte para produzir outra obra de arte. Não é uma invenção da arte contemporânea, é claro, nem mesmo da arte moderna: num ensaio clássico (A arte e seus objetos) o crítico Richard Wollheim sugere que, ao longo da História, diversos artistas, como Poussin, Manet e Picasso, usaram esse recurso com o objetivo de tentar transmitir ao seu público os mesmos sentimentos e efeitos que determinada obra despertou neles próprios, o que pressupõe uma identidade de sensibilidades, valores e informações entre o artista que se apropria e seu público.

Mas o termo apropriação ganhou mesmo força e passou a circular depois das últimas vanguardas modernistas, dos anos 60 e 70. É compreensível, já que o pluralismo pós-moderno que se instalou a partir dos anos 80, como se sabe, não acredita mais na busca do novo: o artista contemporâneo típico prefere transitar, lépido e fagueiro, pelo passado, como se estivesse num supermercado da memória artística e cultural, e colher um fragmento aqui, outro acolá, para compor suas reciclagens. É o que faz, por exemplo, o artista japonês Yasumasa Morimura, que recria "cenas" de quadros famosos ou da cultura pop, colocando-se ele próprio como protagonista:
Com o fim da abordagem linear da História, a arte virou uma espécie de liquidificador de discursos do passado da própria arte. Um pouco como na indústria da moda, olha-se para o passado como fonte de referências a recombinar nos produtos da próxima temporada.

O fato é que hoje se emprega a palavra apropriação para denominar muitas práticas diferentes, da citação à cópia pura e simples. Podem ser apropriados, em graus diversos: imagens, estilos, modelos da História da arte ou da cultura de massa, materiais, técnicas etc, de contextos não-artísticos inclusive. A questão é saber se todas essas práticas são de antemão aceitáveis ou se existem limites – associados ás idéias de plágio, autenticidade e originalidade, por exemplo.

Em qualquer outra forma de arte – como a literatura ou a música – é inconcebível a transcrição pura e simples de obra alheia. O tema aliás é explorado magistralmente por Jorge Luis Borges no conto Pierre Menard, autor do Quixote, no qual o protagonista, pós-moderno avant la lettre, reescreve palavra por palavra o Dom Quixote de Cervantes: a leitura do conto produz a sensação do absurdo do empreendimento – e do ridículo de sua justificação. E no entanto, nas artes plásticas, faz-se exatamente isso, sem que ninguém ache absurdo nem ridículo.
Assim, para só citar dois exemplos, Sherrie Levine pode reproduzir uma foto de Walker Evans - e assiná-la como se fosse obra sua; e Mike Bildo pode reproduzir o urinol de Duchamp - e assiná-lo como se fosse obra sua. (Aliás Levine também se apropriou do urinol, só que o pintou de dourado); e Jeff Koons pode se apropriar de um balão em forma de cãozinho, mandar sua equipe reproduzi-lo em alumínio e assinar o resultado como se fosse obra sua. Em todos os casos, o original permanece visível e identificável,como um tapa na cara do espectador: este fica mudo diante de tanta genialidade. Mas quem fizer a mesma coisa com um livro ou uma música corre o risco de ser processado.

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Não sou um sujeito dogmático: se me apresentarem argumentos convincentes em defesa das obras de Lecine, Bildo e Koons, posso perfeitamente mudar de opinião – ao contrário, aliás, daqueles que defendem incondicionalmente a produção artística contemporânea, a ponto de terem aversão a qualquer pensamento independente. Mas as manifestações que chegam dessas pessoas são muito frágeis: por maior que seja a boa vontade, seus argumentos não resistem ao mais superficial exame crítico. Não são muito diferentes, aliás, do que se encontra nos livros americanos e europeus (já que a produção editorial brasileira nesta área é nula) sobre arte contemporânea.

Assim, por exemplo, argumenta-se que toda arte sempre se apropriou de imagens e conceitos do mundo. Leonardo da Vinci, portanto, seria um artista apropriador, por tomar emprestado elementos da biologia, da matemática e da engenharia em suas obras. Francamente, isso é uma bobagem: o artista transfigura a realidade em um processo criativo, não se apropria dela: se bastasse mudar as coisas de lugar, qualquer arumadeira de hotel seria artista. Igualmente tolo é o argumento de que as tintas, os pincéis e a tela são “ready-mades” dos quais o autror se apropria. E no entanto são idéias assim que sustentam a teoria contemporânea sobre a arte.


Quando Picasso e Braque colaram na superfície da tela pedaços de jornal, palha ou corda, estavam, de fato, incorporando às suas obras elementos apropriados do “mundo real”. Além disso, as colagens representaram um ponto de inflexão na arte do século XX, na medida em que libertaram o artista da superfície plana da tela. Mas isso é completamente diferente do que Duchamp fez com o urinol: Picasso e Braque integraram elementos não-pictóricos ao quadro provocando um estranhamento pelo atrito entre a matéria e a representação, mas nem de longe propunham que o mero gesto de deslocar um objeto comum de seu contexto cotidiano e funcional para o ambiente “nobre” de um museu ou galeria o transformaria em arte – premissa da obra mais famosa de Duchamp, que inaugurou o que chamei em outro texto de “arte por designação”.

Por sua vez, a Mona Lisa com bigode e “rabo quente” de Duchamp é outra forma de apropriação: a legenda L.H.O.O.Q. (“Elle a chaud au cul” ) é um marco fundador na história da elevação da gracinha ao status de arte: até hoje, o maior recurso de muitos artistas continua sendo a gracinha. Tudo bem que na época a obra teve sentido: mas colocar no mesmo saco da "apropriação" a Mona Lisa e a brincadeira de Duchamp é um pouco demais.

É preciso separar as coisas, enxergar as nuances entre o preto e o branco, saber usar uma régua. Chegamos num ponto em que a mera sugestão de que existem obras interessantes e obras equivocadas é taxada de reacionarismo: só se aceita a adesão incondicional a qualquer coisa que se faça com o rótulo de arte contemporânea. Os artistas, especialmente aqueles consagrados pela mídia, viraram assim uma espécie de divindades temperamentais: até o que eles cospem vira arte, e ai de quem discordar. Além do mais, como as pessoas têm coisas mais importantes em que pensar, simplesmente não se dão o trabalho de entrar num debate que, afinal de contas, só traz aborrecimentos, cara feia dos amigos do meio artístico etc.

A ausência de debate, de instâncias críticas, leva a distorções grotescas: por exemplo, ignorar-se a diferença entre uma citação criativa e uma usurpação pura e simples, entre a assimilação de influências e a impostura falsificadora.

Quem perde é a arte, cujo ststus simbólico na sociedade é hoje semelhante, não canso de repetir, ao da moda e da indústria do entretenimento. Alguma coisa se perdeu, está se perdendo: será que ninguém percebe?

-oOo-

Sintomaticamente, nos textos teóricos que tocam no assunto, falam da apropriação como uma “estratégia”: deslocar uma imagem qualquer de seu contexto e inseri-la em outro contexto é uma forma de alterar seu significado, sugerir novas interpretações dessa imagem e, supostamente, colocar em questão as noções de originalidade e autenticidade.

Ora, a obra de Sherrie Levine e outros artistas apropriacionistas não coloca em questão essas noções, ela as nega deliberadamente. Incapazes de criar algo original, eles desqualificam a idéia da originalidade para se inserir no sistema da arte - da mesma forma que, num determinado momento, Marcel Duchamp, que começou a carreira como um razoável pintor cubista, resolveu desqualificar a pintura: isso foi também uma estratégia de inserção, mais que um gesto propriamente artístico.

A disseminação dessa prática, em suas diversas variações, sufoca o ato criativo. Para reproduzir ou combinar imagens alheias, seja da tradição artística, seja da cultura de massa, não se requer um talento especial. Pode-se até chegar a resultados interessantes, mas sempre em “segundo grau”, isto é, sempre dependente de algo já feito, algo que se reinterpreta, homenageia ou ironiza. Essa pretensão não é muito pequena para o artista? Quando Rauschenberg fez isso em suas serigrafias dos anos 50, foi pelo menos uma novidade. Mas e hoje?

Cada vez fico mais convencido de que o maior problema do artista contemporâneo é a falta de ambição. Seduzido pelo mercado e pelas instituições, ele se deixou convencer de que a época da invenção já passou, de que transgressão boa é aquela que vende e dá mídia, de que a pintura morreu etc etc etc..


PS. Falando em apropriações, o tema do questionamento da arte foi hoje saudavelmente apropriado por um colunista do GLOBO, o meu amigo Arnaldo Bloch. Quanto mais gente entrar na discussão sobre a arte, melhor, mas falar mal do Expressionismo Abstrato nessa altura do campeonato??? Isso revela uma incompreensão básica sobre as questões formais da Arte Moderna. Deve ter gente babando de felicidade, porque assim fica fácil desqualificar a crítica, chamar os jornalistas de reacionários etc. Só espero que não confundam as idéias do artigo com aquilo que escrevo aqui.