Monday, March 10, 2008

Apropriações

“Apropriação” designa o ato ou efeito de apoderar-se integralmente ou de partes de uma obra de arte para produzir outra obra de arte. Não é uma invenção da arte contemporânea, é claro, nem mesmo da arte moderna: num ensaio clássico (A arte e seus objetos) o crítico Richard Wollheim sugere que, ao longo da História, diversos artistas, como Poussin, Manet e Picasso, usaram esse recurso com o objetivo de tentar transmitir ao seu público os mesmos sentimentos e efeitos que determinada obra despertou neles próprios, o que pressupõe uma identidade de sensibilidades, valores e informações entre o artista que se apropria e seu público.

Mas o termo apropriação ganhou mesmo força e passou a circular depois das últimas vanguardas modernistas, dos anos 60 e 70. É compreensível, já que o pluralismo pós-moderno que se instalou a partir dos anos 80, como se sabe, não acredita mais na busca do novo: o artista contemporâneo típico prefere transitar, lépido e fagueiro, pelo passado, como se estivesse num supermercado da memória artística e cultural, e colher um fragmento aqui, outro acolá, para compor suas reciclagens. É o que faz, por exemplo, o artista japonês Yasumasa Morimura, que recria "cenas" de quadros famosos ou da cultura pop, colocando-se ele próprio como protagonista:
Com o fim da abordagem linear da História, a arte virou uma espécie de liquidificador de discursos do passado da própria arte. Um pouco como na indústria da moda, olha-se para o passado como fonte de referências a recombinar nos produtos da próxima temporada.

O fato é que hoje se emprega a palavra apropriação para denominar muitas práticas diferentes, da citação à cópia pura e simples. Podem ser apropriados, em graus diversos: imagens, estilos, modelos da História da arte ou da cultura de massa, materiais, técnicas etc, de contextos não-artísticos inclusive. A questão é saber se todas essas práticas são de antemão aceitáveis ou se existem limites – associados ás idéias de plágio, autenticidade e originalidade, por exemplo.

Em qualquer outra forma de arte – como a literatura ou a música – é inconcebível a transcrição pura e simples de obra alheia. O tema aliás é explorado magistralmente por Jorge Luis Borges no conto Pierre Menard, autor do Quixote, no qual o protagonista, pós-moderno avant la lettre, reescreve palavra por palavra o Dom Quixote de Cervantes: a leitura do conto produz a sensação do absurdo do empreendimento – e do ridículo de sua justificação. E no entanto, nas artes plásticas, faz-se exatamente isso, sem que ninguém ache absurdo nem ridículo.
Assim, para só citar dois exemplos, Sherrie Levine pode reproduzir uma foto de Walker Evans - e assiná-la como se fosse obra sua; e Mike Bildo pode reproduzir o urinol de Duchamp - e assiná-lo como se fosse obra sua. (Aliás Levine também se apropriou do urinol, só que o pintou de dourado); e Jeff Koons pode se apropriar de um balão em forma de cãozinho, mandar sua equipe reproduzi-lo em alumínio e assinar o resultado como se fosse obra sua. Em todos os casos, o original permanece visível e identificável,como um tapa na cara do espectador: este fica mudo diante de tanta genialidade. Mas quem fizer a mesma coisa com um livro ou uma música corre o risco de ser processado.

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Não sou um sujeito dogmático: se me apresentarem argumentos convincentes em defesa das obras de Lecine, Bildo e Koons, posso perfeitamente mudar de opinião – ao contrário, aliás, daqueles que defendem incondicionalmente a produção artística contemporânea, a ponto de terem aversão a qualquer pensamento independente. Mas as manifestações que chegam dessas pessoas são muito frágeis: por maior que seja a boa vontade, seus argumentos não resistem ao mais superficial exame crítico. Não são muito diferentes, aliás, do que se encontra nos livros americanos e europeus (já que a produção editorial brasileira nesta área é nula) sobre arte contemporânea.

Assim, por exemplo, argumenta-se que toda arte sempre se apropriou de imagens e conceitos do mundo. Leonardo da Vinci, portanto, seria um artista apropriador, por tomar emprestado elementos da biologia, da matemática e da engenharia em suas obras. Francamente, isso é uma bobagem: o artista transfigura a realidade em um processo criativo, não se apropria dela: se bastasse mudar as coisas de lugar, qualquer arumadeira de hotel seria artista. Igualmente tolo é o argumento de que as tintas, os pincéis e a tela são “ready-mades” dos quais o autror se apropria. E no entanto são idéias assim que sustentam a teoria contemporânea sobre a arte.


Quando Picasso e Braque colaram na superfície da tela pedaços de jornal, palha ou corda, estavam, de fato, incorporando às suas obras elementos apropriados do “mundo real”. Além disso, as colagens representaram um ponto de inflexão na arte do século XX, na medida em que libertaram o artista da superfície plana da tela. Mas isso é completamente diferente do que Duchamp fez com o urinol: Picasso e Braque integraram elementos não-pictóricos ao quadro provocando um estranhamento pelo atrito entre a matéria e a representação, mas nem de longe propunham que o mero gesto de deslocar um objeto comum de seu contexto cotidiano e funcional para o ambiente “nobre” de um museu ou galeria o transformaria em arte – premissa da obra mais famosa de Duchamp, que inaugurou o que chamei em outro texto de “arte por designação”.

Por sua vez, a Mona Lisa com bigode e “rabo quente” de Duchamp é outra forma de apropriação: a legenda L.H.O.O.Q. (“Elle a chaud au cul” ) é um marco fundador na história da elevação da gracinha ao status de arte: até hoje, o maior recurso de muitos artistas continua sendo a gracinha. Tudo bem que na época a obra teve sentido: mas colocar no mesmo saco da "apropriação" a Mona Lisa e a brincadeira de Duchamp é um pouco demais.

É preciso separar as coisas, enxergar as nuances entre o preto e o branco, saber usar uma régua. Chegamos num ponto em que a mera sugestão de que existem obras interessantes e obras equivocadas é taxada de reacionarismo: só se aceita a adesão incondicional a qualquer coisa que se faça com o rótulo de arte contemporânea. Os artistas, especialmente aqueles consagrados pela mídia, viraram assim uma espécie de divindades temperamentais: até o que eles cospem vira arte, e ai de quem discordar. Além do mais, como as pessoas têm coisas mais importantes em que pensar, simplesmente não se dão o trabalho de entrar num debate que, afinal de contas, só traz aborrecimentos, cara feia dos amigos do meio artístico etc.

A ausência de debate, de instâncias críticas, leva a distorções grotescas: por exemplo, ignorar-se a diferença entre uma citação criativa e uma usurpação pura e simples, entre a assimilação de influências e a impostura falsificadora.

Quem perde é a arte, cujo ststus simbólico na sociedade é hoje semelhante, não canso de repetir, ao da moda e da indústria do entretenimento. Alguma coisa se perdeu, está se perdendo: será que ninguém percebe?

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Sintomaticamente, nos textos teóricos que tocam no assunto, falam da apropriação como uma “estratégia”: deslocar uma imagem qualquer de seu contexto e inseri-la em outro contexto é uma forma de alterar seu significado, sugerir novas interpretações dessa imagem e, supostamente, colocar em questão as noções de originalidade e autenticidade.

Ora, a obra de Sherrie Levine e outros artistas apropriacionistas não coloca em questão essas noções, ela as nega deliberadamente. Incapazes de criar algo original, eles desqualificam a idéia da originalidade para se inserir no sistema da arte - da mesma forma que, num determinado momento, Marcel Duchamp, que começou a carreira como um razoável pintor cubista, resolveu desqualificar a pintura: isso foi também uma estratégia de inserção, mais que um gesto propriamente artístico.

A disseminação dessa prática, em suas diversas variações, sufoca o ato criativo. Para reproduzir ou combinar imagens alheias, seja da tradição artística, seja da cultura de massa, não se requer um talento especial. Pode-se até chegar a resultados interessantes, mas sempre em “segundo grau”, isto é, sempre dependente de algo já feito, algo que se reinterpreta, homenageia ou ironiza. Essa pretensão não é muito pequena para o artista? Quando Rauschenberg fez isso em suas serigrafias dos anos 50, foi pelo menos uma novidade. Mas e hoje?

Cada vez fico mais convencido de que o maior problema do artista contemporâneo é a falta de ambição. Seduzido pelo mercado e pelas instituições, ele se deixou convencer de que a época da invenção já passou, de que transgressão boa é aquela que vende e dá mídia, de que a pintura morreu etc etc etc..


PS. Falando em apropriações, o tema do questionamento da arte foi hoje saudavelmente apropriado por um colunista do GLOBO, o meu amigo Arnaldo Bloch. Quanto mais gente entrar na discussão sobre a arte, melhor, mas falar mal do Expressionismo Abstrato nessa altura do campeonato??? Isso revela uma incompreensão básica sobre as questões formais da Arte Moderna. Deve ter gente babando de felicidade, porque assim fica fácil desqualificar a crítica, chamar os jornalistas de reacionários etc. Só espero que não confundam as idéias do artigo com aquilo que escrevo aqui.

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